Antibioterapia – Impacto da prescrição em Saúde Pública

Evoluir para resistir a uma contrariedade. Parece lógico e é um dos pilares da evolução das espécies. Assim, não é surpreendente que também os microrganismos, como seres vivos que são, adotem esta estratégia para si. Quando expostos a ambientes adversos, eles desenvolverão mecanismos que lhes permitem proliferar e persistir. Desta forma, é necessário estar cada vez mais atento ao ambiente no qual os microrganismos existem.

Desde há muito que se sabe que a incorreta utilização de antimicrobianos leva à emergência de resistências. Aliás, o próprio Fleming alertou para este facto. Contudo, não fomos capazes de ouvir os alertas em tempo útil.

Existem autores que defendem que a resistência aos antimicrobianos é um dos desafios mais complexos da Medicina do século XXI, composto por múltiplas facetas. Os antimicrobianos são uma componente importante da produção animal e, na população humana, são fármacos prescritos em larga escala nos cuidados de saúde primários e nos hospitais. E isto acontece em todas as comunidades no mundo. Até nas mais remotas, onde os cuidados de saúde são mais precários e onde se soma muitas vezes a indisponibilidade do fármaco mais adequado ou do número de doses suficientes para tratar as infeções que se propõem tratar.

Tudo isto tem consequências. Particulares, locais e globais, para mais numa sociedade amplamente globalizada como aquela em que vivemos hoje e em que os grandes fluxos migratórios recrudesceram como não se via há várias décadas.

Impacto das infecções associadas aos cuidados de saúde

A qualidade dos cuidados de saúde prestados hoje, quer seja no domínio do Serviço Nacional de Saúde, quer seja no campo da Medicina privada, é cada vez mais, e de forma legítima, escalpelizado pelos seus consumidores e pelas suas famílias.

Uma infecção que surja no decorrer de um internamento tem naturalmente custos associados, desde logo económicos, pois irá prolongar o tempo de permanência no hospital e irá consumir mais recursos, mas também terá impacto para o doente, acrescentando morbilidade e mortalidade.

Isso mesmo foi demonstrado num artigo publicado na revista Lancet em 2018. Os autores estimaram a incidência de infecções por 16 estirpes de bactérias resistentes aos antimicrobianos, recorrendo a dados extraídos do programa de vigilância de resistência antimicrobiana europeu (European Antimicrobial Resistance Surveillance Network – EARS-Net). Foram estudados os dados correspondentes ao ano de 2015 (figuras 2 e 3).

Observou-se que 67,9% do total de DALYs por 100000 foram provocados por infecções por quatro tipos de bactérias: Escherichia coli resistente a cefalosporinas de terceira geração, Staphylococcus aureus resistente à meticilina, Pseudomonas aeruginosa resistente aos carbapenemos e Klebsiella pneumoniae resistente a cefalosporinas de terceira geração. Infecções por estirpes resistentes à colistina representavam 38,7% do total de DALYs por 100000.

Estas infecções eram mais prevalentes em homens e assumiam particular importância nos extremos de idade (< 1 ano de > 65 anos).

O surgimento dos programas de apoio à prescrição

Em ambiente hospitalar, são utilizados antimicrobianos de mais largo espectro e os indivíduos estão mais vulneráveis, já que podem possuir patologias que à partida são de maior gravidade, mas também porque muitas vezes são submetidos a técnicas ou procedimentos invasivos. Tudo isto tem impacto na ecologia bacteriana hospitalar. Deste modo, é importante actuar em diversas frentes, podendo-se desde logo apontar duas: diminuir o número (e o tempo de utilização em cada doente) de dispositivos invasivos e desenvolver estratégias para melhorar a prescrição de antimicrobianos.

Ao mesmo tempo que assistimos a um aumento do consumo de carbapenemos em ambiente hospitalar, emergem estirpes de Acinetobacter baumannii e de Klebsiella pneumoniae resistentes a esta classe de antimicrobianos. A consequência é a óbvia redução de escolhas terapêuticas, com necessidade de utilização de antimicrobianos cujos perfis de tolerabilidade não são os mais favoráveis. Mas existem outras dimensões neste problema. Por um lado, as espécies de microrganismos não vivem isoladas e podem mesmo partilhar mecanismos de resistência se tal lhes for vantajoso. Além disso, estes microrganismos que mencionámos têm outras propriedades que somam dificuldades à sua erradicação, nomeadamente a capacidade de persistir durante elevados períodos de tempo em algumas superfícies e também a capacidade de se disseminarem entre indivíduos, levando à ocorrência de surtos.

Por tudo isto, assistimos nas últimas décadas a uma mudança de paradigma. A vigilância epidemiológica, outrora a base do controlo de infecção hospitalar, passou a ser indissociável de estratégias de apoio à prescrição. E uma das grandes prioridades das estruturas de governo por todo o mundo é mesmo a implementação e robustecimento dos programas de apoio à prescrição de antimicrobianos. Portugal não é excepção. Se em alguns hospitais estas estratégias estão já implementadas e com resultados bem conhecidos e consolidados, noutros ainda se estão a dar os primeiros passos.

Implementação

Em muitos países da Europa – Dinamarca, França, Alemanha, Irlanda, Holanda, Polónia, Espanha e Reino Unido, mas também na Austrália e EUA existem já programas bem sistematizados de apoio à prescrição de antimicrobianos, mas as dificuldades de implementação são várias. Numa tentativa de orientar a constituição destas equipas, a Sociedade Europeia de Microbiologia Clínica e Doenças Infecciosas (ESCMID), publicou no segundo semestre de 2018, um artigo em que se tentam sistematizar as competências básicas para o desenvolvimento de um programa bem-sucedido.

Desde logo, todos os envolvidos no processo, ainda que oriundos de especialidades médicas diversas, devem possuir conceitos bem fundamentados de microbiologia e da epidemiologia local, nomeadamente quais os gérmens mais frequentes na sua unidade e o seu perfil de resistências. Devem, igualmente, conhecer os mecanismos fisiopatológicos por detrás da doença produzida por determinado microrganismo e quais os métodos diagnósticos disponíveis e relevantes para o diagnóstico etiológico preciso. É fundamental o domínio dos conceitos de colonização e infecção e como se podem distinguir, já que o sobre-uso de antimicrobianos em casos de colonização é um potenciador da emergência de resistências.

Grande pilar do exercício da Medicina, a realização de uma história clínica minuciosa e exame físico cuidado são fundamentais para uma boa decisão. Perceber o histórico de infecções e a sua “carta epidemiológica” é de superior importância na escolha do antimicrobiano mais correcto.

Para além de procurar e conhecer as fontes de informação mais adequadas, estas equipas devem conseguir indicar claramente quando não deve ser prescrito um antimicrobiano e reconhecer que por vezes são necessárias medidas adicionais para o controlo de uma infecção, como por exemplo a drenagem de um abcesso ou a remoção de uma prótese.

Implementar um programa de apoio à prescrição passa também por melhorar alguns aspectos que por vezes são deficitários nas enfermarias, como por exemplo a colheita atempada de produtos para exame microbiológico. Só assim se podem obter resultados laboratoriais fidedignos, que permitem depois tomar melhores decisões mais à frente no processo. Para além disso, perceber que nem todas as infecções requerem um tratamento imediato e que pode ser lícito aguardar para implementar uma terapêutica dirigida no caso de uma infecção óssea crónica, por exemplo, o que naturalmente não se verifica em situações urgentes e ameaçadoras de vida em que a terapêutica é muitas vezes empírica, mas sustentada pelo conhecimento da epidemiologia local.

Outra das especificidades destas equipas é o domínio de conceitos de farmacocinética e farmacodinâmica dos antimicrobianos que permite escolher as doses, em força e número, mais adequadas, qual a via de administração indicada, quando deve o tratamento ser revisto e por quanto tempo deve ser mantido. Tudo isto numa permanente adaptação à realidade individual de cada doente, nomeadamente da sua função renal e hepática e da sua evolução clínica.

O registo no processo clínico do doente deve ser minucioso para que a informação relevante esteja acessível a todos os prestadores de cuidados e para que depois todo o processo possa ser submetido a avaliação crítica.

Atendendo à complexidade da tarefa descrita nos últimos parágrafos, a maior parte das vezes o apoio à prescrição é desenvolvido por uma equipa multidisciplinar que envolve farmacêuticos, microbiologistas e infecciologistas, entre outros. Esta abordagem integrada de múltiplas vertentes do conhecimento médico e a interacção constante com as equipas médicas responsáveis pelo doente tem vantagens evidentes relativamente a outras estratégias implementadas no passado, como a restrição de prescrição, a suspensão automática ou períodos de alternância de agentes antimicrobianos disponíveis para prescrição, em que pouco se acrescentava ao conhecimento individual de cada um dos intervenientes no processo.

Conclusões

Quase toda a literatura publicada nos últimos anos aponta para benefícios dos programas de apoio à prescrição. Da redução da emergência de resistências à redução do número de infecções por Clostridium difficile, a evidência é robusta. Os resultados são ainda mais satisfatórios quando em conjunto se aplicam estratégias de controlo de infecção hospitalar. Igualmente interessante é perceber que existem locais onde estas intervenções têm ainda mais impacto, como é o caso das unidades de hemato-oncologia e de cuidados intensivos.

Em linha com as vantagens para os doentes, é também relatado um menor consumo de recursos financeiros que não se fica apenas pela poupança na prescrição de medicamentos, mas que inclui uma ampla redução nos custos indirectos associados à prestação de cuidados a doentes com infecções por microrganismos multirresistentes e à evicção de morbilidade.

Em suma, a prescrição antimicrobiana define e é definida pela ecologia microbiológica de uma instituição e todos os que nela trabalham têm um papel a desempenhar no controlo da infecção, na evicção da emergência de resistências e no uso mais racional dos antimicrobianos.

Margarida Prata

(Médica no Centro Hositalar e Universitário de Coimbra)

Nota: a autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

Artigo publicado na TecnoHospital nº 91

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