Entrevista a Henrique Lopes, Presidente da Comissão Setorial para a Saúde

O percurso académico e profissional de Henrique Lopes, professor, investigador, Presidente da Comissão Setorial para a Saúde (CS09) e também Presidente de uma Sociedade Científica Internacional, exibe uma linha de rumo transversal a temas da Saúde, em particular nas preocupações com a qualidade na Saúde Pública. “Os vários profissionais da saúde tocam cada um o seu instrumento, mas se a orquestra desafina, o problema é do maestro”, diz-nos numa entrevista em que vislumbra a necessária mudança do Serviço Nacional de Saúde no sentido de uma abordagem estrutural mais holística, tornando os processos mais humanizados, desenvolvendo tendencialmente uma cultura de exigência e qualidade.

Como é que começou a interessar-se pela área da Saúde e designadamente pela qualidade em Saúde?

Eu começo a minha vida profissional ligada à Saúde, licenciei-me depois em Psicologia Social e fiz posteriormente uma terceira formação na área das Ciências Económicas, até ao doutoramento. Este percurso foi sempre muito ligado a temáticas de Saúde, em particular a questão da qualidade, e também ao que para mim tem sido um vetor central, que é a humanização dos Serviços de Saúde. Têm sido anos de relatórios para instituições estatais, parlamentos, governos, nacionais e internacionais. Entretanto, em 1998 tive um convite do então presidente do IPQ, para integrar a CS09 numa altura em que o ex-secretário de Estado da Saúde Manuel Delgado (que a presidiu) tinha acabado de constituir uma comissão sectorial para a Saúde. Há 6 anos, o seguinte presidente, Dr. Jorge Varanda, reformou-se e convidaram-me para o suceder na CS09, o que foi feito mediante eleições em 2011 e 2014.

Esta Comissão está integrada no IPQ?

Sim, mas é preciso perceber qual é o Sistema Europeu da Qualidade, do qual Portugal é país subscritor. O órgão último deste sistema é o CEN (Comité Europeu de Normalização), que valida a ISO e outras Normas. Neste sistema europeu, Portugal está representado via Instituto Português da Qualidade (IPQ), que à semelhança dos seus congéneres europeus está centrado no Ministério da Economia, pois é um ministério transversal a todas as atividades económicas e porque uma Norma pode ser também ela transversal a várias áreas de atividade.

Neste Sistema Europeu da Qualidade temos três blocos principais. Um primeiro, a Metrologia Legal, ou seja, o sistema que dá garantias aos cidadãos e às empresas de que as unidades métricas sobre as quais as Sociedades assentam estão corretas. Por exemplo, quando abastece um litro na bomba de gasolina tem que confiar que corresponde, de facto, a um litro. Outro bloco principal é a Certificação, isto é, por simplificação poderemos caricaturar: verificar por via da auditoria em que medida uma organização que se voluntariou para cumprir determinada coisa, cumpre ou não essa coisa que está vertida num documento chamado “Manual de Qualidade”. Um terceiro bloco, também em extrema simplificação, é a Acreditação, onde se demonstra através do reconhecimento por Entidade Externa do Setor, se aquele Manual de Qualidade é um bom manual, validado nacional e/ou internacionalmente. E quem está acreditado pode, até, certificar outros, como é o caso das Universidades.

Referiu a metrologia. Como é que estamos nesse campo?

Apesar de ser uma peça essencial, a metrologia em Portugal teve muitos atrasos. Muita da preocupação que tenho crido imprimir nestes 6 anos em que presido à CS09, tem sido dar uma força muito grande à metrologia. Até há poucos anos tínhamos por exemplo legislação de metrologia legal para temperatura incidente em termómetros de mercúrio que nem sequer eram legais há muito tempo. Por isso tivemos situações algo complexas, designadamente com os frigoríficos hospitalares e em instalações de saúde que até tinham display, mas cuja qualidade poderia ser comprotetora. Portanto, houve um esforço muito grande da presidência da comissão para dar campo livre a um grupo criado especificamente para refletir sobre a metrologia legal e produzir Recomendações de Metrologia, coordenado pela Prof. Eng. Maria do Céu Ferreira, e onde estão representadas cerca de 20 organizações.

A qualidade na Europa tem uma lógica comercial? 

Não necessariamente num sentido negativo. Reparem que a lógica de estruturação da qualidade na Europa pode definir-se como uma pirâmide em três níveis. Um primeiro nível diz respeito à qualidade legal: aquilo que é preciso cumprir por lei. Um segundo nível é uma qualidade “comercial”, no sentido em que se compra. Mas não se compra o selo, investe-se no processo através do qual se obtém o selo. Uma entidade de saúde, por exemplo, pode certificar-se com o que quiser, desde que a norma seja reconhecida e esteja no ‘portefólio’ do CEN. A entidade decide voluntariamente investir no processo que mais lhe interessa.

Numa terceira camada, onde se insere no essencial a CS09, está o ápice destes dois níveis prévios, que é refletir no presente sobre o futuro da Qualidade.

Os alemães já têm…

O problema é que há muitas definições para as mesmas palavras-chave. Se perguntarmos a cada uma das 800 profissões que coabitam a saúde, encontramos diferentes códigos e definições sob a mesma denominação ou unidade conceptual. Ainda assim, não tenho dúvidas que todas as profissões tentam trabalhar bem. O problema é de maestro. É como ter um naipe de cordas, metais, percussão, etc. Todos sabemos qual a música para tocar, mas se cada um dos músicos, que até podem ser brilhantes, não estiver compassado, aquilo sai uma coisa cacofónica.

O professor está também ligado à UNESCO?

Tenho trabalhado em modelos de criação de literacia na Saúde e o ano passado tive a felicidade de a UNESCO, com quem colaboro desde 2011, me convidar a ser Keynote Speaker sobre literacia da saúde na sua Conferência Confintea, que se realiza de sete em sete anos. Depois, convidaram-me a escrever o que eu tinha proposto num capítulo para um livro a editar por eles sobre essa matéria.

…uma honra para si e para Portugal.

Talvez sim, talvez não. Uma das primeiras coisas que fiz foi ter o cuidado de comunicar à tutela máxima. Deram-me os parabéns e até hoje não houve mais contacto. Certamente terão coisas mais importantes para tratar, mas vou fazendo o meu percurso de produção académica. O que quero dizer é que tenho tentado conjugar a atividade da CS09 neste enquadramento UNESCO, o que pode dar outro tipo de asas e de abertura de portas para a comissão.

Quais são as linhas principais deste modelo a que se refere?

O essencial do “meu” modelo de literacia é a enorme importância que é dada à formação através da literacia na Saúde, processo que a acompanha do berço à morte. Igualmente é nuclear a corresponsabilização do cidadão e daqueles que estão a seu cargo nos processos de geração e manutenção da saúde por forma a evitar a doença, que a acontecer é porque algo falhou potencialmente a montante.

Por exemplo, um estudo feito em Espanha mostrou que cerca de 35 por cento das idas às urgências são fruto de erros de toma de medicamentos, pessoas que se enganam e tomaram os medicamentos em duplicado ou se esqueceram de os tomar. Aqui é uma área onde falta um papel claramente definido e instruído do cuidador e o nosso SNS ainda é omisso em relação a essa figura. Nunca se pode reduzir totalmente os riscos porque todos acabamos por morrer, mas a verdade é que se podia, com uma correta prevenção, reduzir em muito os custos e o sofrimento. Qualquer urgência hospitalar custa, em média, mil ou mais euros. E não estamos, sequer, a falar da questão humana, a mais importante.

Ainda voltando à comissão a que preside, como é que está organizada e que dificuldades enfrenta?

Basicamente temos um restrito grupo de peritos, que sou eu, o Prof. Doutor Mário Macedo, especialista em informática da Saúde, e a Eng. Noélia Duarte, que podemos considerar a mãe da Certificação em Portugal, no início dos anos 80. Temos a representação formal da Ordem dos Médicos, dos Enfermeiros, dos Farmacêuticos e dos Psicólogos. Outro grupo agrega os órgãos do Ministério da Saúde e temos também as associações profissionais e setoriais da Saúde. Por último, abrimos mais recentemente as portas às grandes associações de doentes. É muito importante este contraponto crítico e eu defendo um claro reforço do papel dos doentes e das famílias.

Que grupos de trabalho existem na comissão?

á referi antes o grupo de trabalho coordenado pela Prof Eng. Maria do Céu Ferreira, que trata da metrologia e já produziu duas recomendações (instrumentos de pressão e temperatura) e está a trabalhar numa terceira. Na CS09 temos uma coisa muito boa que é pôr as recomendações gratuitamente na net, abertas a todos. Somos o único país a fazê-lo (que eu conheça), enquanto os colegas alemães e norte-americanos vendem a 200 dólares ou mais cada recomendação.

O Grupo de Trabalho da Informática de Saúde deu, entretanto, origem a uma Comissão Técnica. Um estudo já bastante antigo do Doutor Mário Macedo veio revelar que em Portugal havia 86 diferentes sistemas informáticos na Saúde, que na maioria não dialogam entre si e quando parecem fazê-lo podem correr o risco de transmitir dados errados. Esta questão é velha em outros países, nós é que não a transportámos para Portugal. Portanto, o grupo de trabalho da informática, mais do que fazer recomendações, fez um pedido imediatamente autorizado ainda pelo anterior presidente do IPQ, para ser criada uma CT (Comissão Técnica 199, na denominação numérica do CEN)) que tem autorização formal e legal para produzir Normas, desde que cumpra os procedimentos definidos internacionalmente. Está a terminar, neste momento, a Norma Portuguesa para a segurança informática em saúde. Trata-se de transpor as normas internacionais de segurança informática, o que, de todo, não é uma simples tradução.

Temos um terceiro grupo, o do medicamento, coordenado pelo Prof Dr. Henrique Santos, da Ordem dos Farmacêuticos, que produziu uma recomendação importante sobre as Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas (ERPIs). Para dar uma ideia, um estudo da Faculdade de Farmácia concluiu que em 20 lares auditados, todos de boa qualidade e colaborantes no estudo, 70 por cento das caixas de medicamentos estavam erradas, apesar de nenhum desses erros ter gravidade significativa, principalmente trocas de horas nas tomas. Se os bons têm 70 por cento de erro como será nos “manhosos”? É essencial que a preparação das caixas de medicamentos seja feita somente por profissionais de saúde, é esse o sentido geral da recomendação.

Há ainda um outro Grupo de Trabalho coordenado pela Dra. Paula Marques, do SICAD, que tem produzido Recomendações sobre Qualidade de Assistência na área das Dependências. A primeira dessas Recomendações foi apresentada em Congresso na Fundação Calouste Gulbenkian no ano passado.

No campo da Saúde há ainda muito a fazer para a segurança. Uma análise sanguínea ou uma ecografia feita em laboratórios diferentes dá resultados muitas vezes díspares. Que opinião tem sobre esta disparidade de leituras?

É verdade, mas não tanto como acontecia até ao fim dos anos 90. Podemos estar a falar de problemas de calibração ou de sensibilidade das máquinas. Pode haver diferentes justificações, por exemplo, um técnico honesto e competente, que cumpre uma norma que lhe diz que o software tem que bater certo com um dado parâmetro, e para tal o aparelho tem que ser ajustado de determinada maneira e com determinada periodicidade é diferente de um outro que vá fazer aquilo que acha na hora, ou que não tem especificações do que deve fazer. É aqui que os processos de Qualidade podem facilmente fazer a diferença.

A Comissão a que preside foi criada em 97 integrada no chamado Sistema Português da Qualidade. Esse sistema ainda existe formalmente?

Tem sido muito transformado. Um dos problemas que os sucessivos cortes e dificuldades têm provocado é a escassez de pessoas. A comissão chegou a estar suspensa entre 2002 e 2007. Há alturas em que as pessoas se questionam. Trabalham gratuitamente, sacrificam feriados, serões e fins-de-semana…

Coordena atualmente um projeto internacional, com ligação à Universidade Católica. Que projeto é?

É um projeto científico que reúne 12 países e visa a avaliação das Politicas Públicas destinadas à eliminação da Hepatite C na Europa. Estamos a desenvolver uma ferramenta de modelação matemática que permite desenhar o modelo epidemiológico no sentido de saber em que ano será possível eliminar a doença dado um específico conjunto de Politicas de Saúde Pública. É uma ferramenta de decisão política, se quiserem. Vamos tentar que seja a primeira doença sobre a qual é possível modelar políticas no sentido de dizer qual é a medida mais rápida, ou a mais barata, e como resultado dessas políticas, em que ano se elimina a doença.

Tem apoio de algum organismo oficial?

Em Portugal ninguém se chega muito à frente em matéria de dinheiro para investigação científica, mas tem havido apoio de financiadores internacionais. Pelo menos conseguimos ter  cá o centro de modelação matemática do projeto, bem como fornecedores portugueses dos restantes serviços. Em Portugal nem sempre há reconhecimento do trabalho desenvolvido. Acho que, por vezes, estão mais atentos no estrangeiro ao nosso trabalho. É o caso do livro de Consenso Estratégico Nacional, que publicámos em 2014 sobre a eliminação da Hepatite C, no âmbito da Unidade de Saúde Pública, cujas medidas propostas foram, muitas delas, aplicadas no terreno. Na altura recebemos felicitações públicas do Diretor dessa área da OMS e por alguma razão fomos agora convidados para entrar e liderar este projeto de modelação matemática das políticas de saúde pública.

Numa entrevista recente afirma que a produtividade em Saúde está muito bem, pois somos o quarto melhor país da Europa, melhor do que a Alemanha ou Noruega. Lemos bem? Quer explicar melhor?

Leram muito bem. Significa que trabalhamos muito em Saúde. A produção de atos por profissional é muito boa, embora pelas más razões, pois os salários são muito baixos e, deste modo, teremos sempre custos mais baixos por ato, apesar de os valores estruturais serem equiparados. Ou seja, se comprarmos um dispositivo médico no mercado internacional, custa aproximadamente o mesmo que custará a uma unidade de saúde espanhola ou alemã. Ora, se eu compro esses fatores infraestruturais ao mesmo preço e chego a um valor final mais baixo, significa que os custos do trabalho são muito inferiores e os custos associados ao acompanhamento do doente são igualmente inferiores. Certo é que, apesar de todas as dificuldades, temos conseguido menores tempos de espera do que outros países. No Reino Unido há atualmente um milhão de cirurgias em espera. No Canadá (Quebec), nos picos de gripe, tiveram este inverno um tempo médio de 20 horas de espera nas Urgências…

Estamos bem então?

As nossas Urgências não estão bem, mas não esperamos 20 horas! Há em Portugal o vício de dizer que é tudo pior do que lá fora. Não é verdade. As realidades são mais médias do que leituras imediatistas querem fazer crer. Temos produtividades elevadíssimas quando avaliadas em custo por ato cirúrgico, clínico, enfermagem, etc.

Mas ainda há muito a fazer: até há pouco tempo, mais de metade dos trabalhadores do Ministério da Saúde não tinha a escolaridade obrigatória. Outro indicador: não há muitos anos, segundo dados Pordata, o salário médio da Saúde em Portugal não chegava a mil euros, enquanto no norte da Europa era três vezes mais. 

Se quiséssemos fazer um estudo de custo-benefício para um hospital numa determinada área, a quem é que poderíamos recorrer em Portugal?

Há muitas boas escolas de Economia. Há uma série de economistas da saúde em Portugal que fazem trabalho sério e muito competente. O problema de sempre é o acesso aos dados, que em Portugal é muito restrito.

Como avalia as linhas mestras da estratégia em termos de Saúde Pública nos últimos anos?

Tem havido uma grande ênfase no tratamento e pouco investimento em prevenção. Basicamente deixamos as coisas acontecerem e depois agimos. É sempre uma lógica ‘a posteriori’. Quando fazemos uns rácios simples chegamos à conclusão que prevenção na Saúde em Portugal vale cerca de 0,5 por cento e os restantes 99,5 por cento vão para tratamento. Incluindo os programas indiretos teremos relações 2:98.

Um modelo que se aplica também no âmbito das infeções?

Em todas as áreas. Em Portugal ninguém sabe verdadeiramente quantas infeções hospitalares ocorrem. Estima-se 10 por cento do total, mas há serviços com 5,5 por cento e outros pontualmente com 100 por cento. São azares durante períodos temporários, mas acontece. Quando falo de uma estimativa genérica de 10 por cento é o valor a que se chegou num estudo efetuado há anos no Hospital Garcia de Orta. Quem trabalha esta área a sério consegue baixar para 5 ou 5,5 por cento. O Hospital de Dona Estefânia (pediátrico), por exemplo, tem serviços a 5,6 por cento e Lisboa Ocidental tem serviços a cinco e tal. Portanto, é possível fazer coisas, mas é caro. Mas agora ponho a questão ao contrário: E quanto custa uma infeção hospitalar? Um antibiótico de terceira linha, os últimos que se utilizam, pode custar cerca de 10 mil euros por embalagem. E o internamento? Uma pessoa nos Cuidados Intensivos custa cerca de 2500 euros/dia. Muito facilmente, e por baixo, uma infeção hospitalar chegará aos 20 mil euros. Os escoceses trabalharam esta questão tão bem e barato. Verificaram (por exemplo e entre muitas outras medidas) que a maior parte das bactérias hospitalares não gosta do cobre e então substituíram os puxadores das portas, manípulos e outras peças onde se toca. Só esta simples medida foi suficiente para caírem os casos de infeções hospitalares.

A probabilidade de infeção está também diretamente relacionada com a circulação do ar, coisa que nós já sabíamos em Portugal há mais de 100 anos, quando abriu o Hospital de Santana, em Carcavelos, que tem um sistema de ar do mais avançado que existe em Portugal. A arquitetura do hospital faz com que o ar circule forçadamente duas vezes mais rápido do que conseguimos em unidades modernas e só isso é um fator brutal de redução da infeção originada na via aérea. Às vezes são coisas simples e não é preciso andar desesperadamente à procura de supersistemas.

Podemos dizer que a qualidade é uma questão de cultura?

É acima de tudo uma questão de cultura organizacional. Independentemente do que fazemos hoje, o que importa é que amanhã temos que fazer melhor. É uma cultura de reforçar o conceito de equipa. E essa equipa deve ser de todos aqueles que são necessários à boa assistência ao doente, claro que cada um dentro das suas competências.

Concorda que o SNS deve ser reformulado?

O Serviço Nacional de Saúde é uma aquisição civilizacional. Entre os países desenvolvidos no Mundo Ocidental / Ocidentalizado só há três que não têm SNS (Estados Unidos, África do Sul e Suíça). A alternativa é no primeiro caso um custo quatro vezes superior e rácios de saúde inferiores aos portugueses. O sistema americano tem um brutal problema de custos de não qualidade. A Suíça tem um sistema complementar feito de contributos de um micro SNS, o sistema mutualista e o sistema de seguros, que se conjugam num sistema que funciona muito bem mas é dos mais caros da Europa. Quanto à África do Sul, tem problemas terríveis e quer mudar.

O problema do nosso SNS é que parou de evoluir há 10 ou 15 anos. Não houve evolução tecnológica e organizacional suficiente, nem paridade face aos outros países nos novos rumos da prestação dos cuidados de saúde. É necessário rejuvenescê-lo, enquadrá-lo melhor com um sistema onde hoje estão também os privados. Esta articulação tem que ser clara e transparente.

No âmbito da comissão setorial tem identificado algumas resistências setoriais ou profissionais relativamente às recomendações que a CS09 produz?

As resistências são sempre sibilinas. Ninguém é tonto. Todas as pessoas que têm responsabilidades normalmente têm também grande experiência. Às vezes basta não fazer nada e darem-nos uma palmadinha nas costas e dizerem-nos “sim senhor…isto está muito bem feito”. Dou-vos o exemplo do que aconteceu com o grupo do medicamento, que trabalhou dois anos num documento sobre as ERPI, para o qual foi necessário obter consensos junto de um conjunto enorme de cerca de 20 organizações com interesses muito contraditórios. Apesar das dificuldades todas as partes assinaram e subscreveram o documento. Agora mostrem-me a primeira ERPI que tem essa recomendação de segurança no uso do medicamento! Eu não conheço nenhuma…

Sabemos que em Portugal há uma tendência para as autarquias assumirem a gestão escolar e essa intervenção também ocorre quando falamos em saúde, quer a nível de centros de saúde, edifícios, alguns equipamentos. Como é a situação em outros países?

A solução é muito política. Em Portugal temos um terrível deficit de cidadania. Não temos o carinho pela coisa pública. Quando estive na Dinamarca, um colega falava-me do “nosso [dele] hospital”. As pessoas iam voluntariamente cuidar do jardim do hospital local. Este sentimento do bem coletivo é uma coisa que encontramos muito na Escandinávia e que possibilita que os lares, as creches ou os hospitais sejam cuidados pelo coletivo. Karlstad, na Suécia, tem exemplos notáveis. Muita falta nos faz esta cultura de cidadania.

Que opinião tem sobre a descentralização no setor da Saúde?

A questão é sempre organizacional. As soluções serem mais ou menos centralizadas tem a ver com o sistema de gestão da informação que se partilhar. A empresa mais descentralizada do Mundo, a Walmart, com 2 milhões de empregados tem, ao mesmo tempo, um sistema que centraliza as caixas em Nova Iorque. Hoje, descentralizar depende basicamente da tecnologia utilizada, e no nosso caso, os sistemas de informação e comunicação em Saúde sempre estiveram mal desenhados no sentido de termos um sistema único, integrado, com escalabilidade e de ponta. Foram sendo feitos de boas vontades de quem os gere e investimentos pontuais de governantes que a cada momento eram mais ou menos sensíveis ao assunto.

Falou antes na questão da humanização do sistema. Quer concretizar?

Não é possível pensar hoje um sistema de Saúde sem pensar a sua dimensão humanista. Por definição, as pessoas estão doentes e não podemos esquecer essa sua condição. É preciso visão holística, tratar o corpo, mas também a cabeça, tratar a doença da pessoa e a pessoa. Essa é a grande mudança de paradigma que o SNS português ainda não adquiriu como sistema organizacional.

Entrevista por Fernando Barbosa, Abraão Ribeiro e Carlos Alberto Costa
Fotos de Carlos Alberto Costa

Newsletter TecnoHospital

Receba quinzenalmente, de forma gratuita, todas as novidades e eventos sobre Engenharia e Gestão da Saúde.


Ao subscrever a newsletter noticiosa, está também a aceitar receber um máximo de 6 newsletters publicitárias por ano. Esta é a forma de financiarmos este serviço.