A formação contínua dos recursos humanos do SNS – O seu funcionamento

Autor: Tiago André Gomes de Oliveira
Resumo curricular: Técnico Superior a exercer funções no Centro Académico e de Formação do Hospital da Senhora da Oliveira, Guimarães. Formador da área de ciências empresariais e de tecnologias de informação e comunicação. Mestre em Educação na especialização de Formação, Trabalho e Recursos Humanos, pelo Instituto de Educação da UM. Licenciado e Pós-Graduado em Gestão de Empresas. Pós-Graduado em Administração e Gestão da Saúde pela Universidade Lusíada.
Resumo do artigo
Este artigo retrata a importância da formação profissional dos profissionais de saúde das unidades/organismos do Serviço Nacional de Saúde Português. É feita uma alusão ao seu funcionamento, objetivos, princípios e modalidades de formação, assim como ao financiamento da atividade. Verifica-se a objetividade e pertinência da formação dos profissionais de saúde de forma permanente nos seus diversos domínios de atuação. Aperfeiçoamento contínuo das competências dos Recursos Humanos leva a melhores resultados, equidade na prestação de cuidados de saúde, suportado ou não por fundos próprios e/ou europeus.
Introdução
O desempenho global do setor da saúde é fortemente dependente dos recursos humanos, pelo que a implementação de novos modelos de prestação de cuidados, de novas técnicas, de novos sistemas de gestão da saúde, requer profissionais dotados de conhecimentos, aptidões e atitudes conducentes ao exercício adequado das suas funções e consequentemente satisfação das necessidades dos doentes.
Torna-se claro que a formação surge como essencial nos quadros de recursos humanos do setor da saúde, objetivando o desenvolvimento e a atualização permanente de competências, caracterizada como vetor fundamental na gestão e evolução organizacional de cada entidade de prestação de cuidados.
Por conseguinte, assistiremos neste artigo a um retrato do funcionamento da formação profissional nos organismos do Sistema Nacional de Saúde. É realizada uma contextualização, seguida da identificação dos objetivos, princípios e modalidades da formação e consequentemente uma caracterização sucinta do sistema de financiamento.
Contextualização
Em Portugal, o desenvolvimento do sistema de saúde desde a década de 30 do século XX foi assinalado “pela ideologia corporativa que imprimiu em toda a legislação uma conceção de assistência médico-sanitária, predominantemente caritativa” [1]. “A filosofia subjacente preconizava a não intervenção do Estado nos problemas de saúde; o seu papel era meramente supletivo às iniciativas particulares do indivíduo ou de outras instituições nomeadamente da Previdência Social” [1].
Refere-se que “apenas em 1971, com a nova reforma, se reconhece, pela primeira vez, o direito à saúde de todos os cidadãos e a intervenção do Estado deixa de ser supletiva para ser responsável pela política da saúde, bem como pela sua execução. Dá-se o a integração de todas as actividades de saúde e assistência existentes, bem como o planeamento dessas actividades” [2].
A integração “no Ministério da Saúde dos Serviços da Previdência, bem como a nacionalização dos hospitais das Misericórdias, foram alguns passos percorridos para a concretização do Serviço Nacional de Saúde (SNS), criado pela Lei n.º 56/1979, de 15 de setembro”, sendo que “este diploma foi substituído pela Lei de Bases da Saúde” [2].
De acordo com a base IV da LBS, o sistema de saúde português visa a efetivação do direito à proteção da saúde através de serviços próprios do Estado, de acordos realizados com entidades privadas para a prestação de cuidados, apoia e fiscaliza a restante atividade privada na área da saúde.
“O sistema de saúde é constituído pelo Serviço Nacional de Saúde e por todas as entidades públicas que desenvolvam actividades de promoção, prevenção e tratamento na área da saúde, bem como por todas as entidades privadas e por todos os profissionais livres que acordem com a primeira a prestação de todas ou de algumas daquelas actividades” [3].
No essencial, o SNS é o conjunto de instituições e serviços, dependentes do Ministério da Saúde, que tem como missão “garantir o acesso de todos os cidadãos aos cuidados de saúde, nos limites dos recursos humanos, técnicos e financeiros” [2].
Das instituições e serviços integrantes no SNS importa destacar os hospitais. Estas instituições caracterizam-se “pelos níveis de diferenciação, segundo a sua implantação e serviços especializados que presta, possuindo meios tecnológicos que não existem nos Centros de Saúde, cujo objectivo principal, 24 horas por dia, é o diagnóstico, o tratamento e a reabilitação, que pode ser desenvolvida em regime de internamento ou ambulatório. Compete-lhe, igualmente, promover a investigação e o ensino, com vista a resolver problemas de saúde” [2].
Quando nos referimos aos recursos humanos, e no caso dos profissionais de saúde, a lei estabelece os requisitos indispensáveis ao desempenho de funções e os direitos e deveres dos profissionais, nomeadamente os de “natureza deontológica”, tendo em consideração a importância social da sua atividade, para além de que a política de recursos humanos objetiva a “satisfação das necessidades da população, a garantia da formação, da segurança e o estímulo dos profissionais” [3].
Com efeito, e abordada a questão da política de recursos humanos, é essencial explorar uma das suas dimensões, nomeadamente a da formação contínua dos profissionais de saúde.
No que diz respeito a esta matéria, a base XVI da LBS preceitua o seguinte: “1 – A formação e o aperfeiçoamento profissional, incluindo a formação permanente, do pessoal de saúde constituem um objectivo fundamental a prosseguir. 2 – O Ministério da Saúde colabora com o Ministério da Educação nas actividades de formação que estiverem a cargo deste, designadamente facultando nos seus serviços campos de ensino prático e de estágios, e prossegue as actividades que lhe estiverem cometidas por lei nesse domínio. 3 – A formação do pessoal deve assegurar uma qualificação técnico-científica tão elevada quanto possível tendo em conta o ramo e o nível do pessoal em causa, despertar nele o sentido da responsabilidade profissional, sem esquecer a preocupação da melhor utilização dos recursos disponíveis, e, em todos os casos, orientar-se no sentido de incutir nos profissionais o respeito pela vida e pelos direitos das pessoas e dos doentes como o primeiro dever que lhes cumpre observar”.
Afirma-se que “praticamente todos os organismos com autonomia administrativa e financeira têm estruturas de formação, não havendo um organismo centralizador desta actividade, nem da informação que se produz sobre a matéria” [2].
No entanto, no que diz respeito à coordenação e fiscalização de toda a atividade relacionada com a formação profissional dos profissionais da saúde, é da competência da Direção-Geral da Qualificação dos Trabalhadores em Funções Públicas (INA) o exercício da mesma, nos termos do Regime da Formação Profissional na Administração Pública [4].
No campo da saúde, a formação assume duas formas. Temos a formação externa e a formação interna. A formação externa é “largamente consumida pelos grupos profissionais mais diferenciados e de maior poder de compra, especialmente os médicos, enfermeiros e técnicos”, sendo também, “em parte, custeada pelas organizações, mas a maior parte desta actividade decorre a expensas dos interessados” [2]. A formação interna “assegurada pelas organizações” através dos seus Centros de Formação [2]. Relativamente à formação interna, surge a expressão de “formação em serviço”, que tem ganho um peso substancial nos serviços de saúde, e como o nome indica “passa-se dentro dos próprios locais de trabalho, com o apoio ou não dos Centros de Formação e, por vezes, fugindo ao seu controlo” [2].
Objetivos, princípios e modalidades da formação
A realização de formação “deve desenvolver competências e capacidades para o exercício das profissões de saúde, que permitam estimular o brio profissional como forma de fazer sentir a importância e o papel de cada um no caminhar do coletivo” [5]. No entanto, “a complexidade das organizações de saúde, a multiplicidade de produtos, o nível tecnológico e relacional das prestações implica que a formação preencha várias funções e se projecte segundo diversas orientações” [2].
Neste âmbito, na projeção da formação dirigida aos profissionais de saúde devem ser tidos em conta os seguintes princípios: “i) O princípio da especialização obriga ao desenvolvimento de programas cuja preocupação é a especificação técnica; ii) Quando congrega num mesmo objectivo intervenções de diversas áreas do saber, faz apelo para o trabalho de equipa e para a expressão comportamental dirigida à eficácia do grupo (princípio da multidisciplinaridade); iii) Uma vez que o objecto de toda a actividade é a pessoa doente, condicionada social e emocionalmente, a formação deve cobrir a necessidade de estabelecer a comunicação de uma forma efectiva e empática, no respeito da sua condição humana; iv) As unidades de saúde articulam-se com a escola, no sentido de proporcionar formação curricular complementar. A formação complementar é um percurso fundamental na preparação dos profissionais directamente envolvidos na prestação de cuidados; v) Porque a actualização dos conhecimentos é aqui mais necessária que em qualquer outro ramo da actividade humana, a formação também deve obedecer ao princípio da formação contínua ou permanente, a fim de proporcionar resultados de qualidade; vi) Para algumas profissões ou áreas de actividade cujos requisitos não passam por um diploma técnico, pode ser necessário fazer formação inicial ou de integração” [2].
No que diz respeito às modalidades, e de uma forma mais específica, a formação profissional nas instituições da administração pública pode assumir as seguintes modalidades: i) Formação inicial – é de caráter “obrigatória” e “tem lugar durante o período experimental” dos profissionais que iniciam funções, objetivando-se “contribuir para a consciencialização dos valores de serviço público e das especiais características do desempenho de funções públicas”. Esta formação é destinada à “aquisição de competências indispensáveis” por parte daqueles que se estão a integrar numa entidade/serviço [4] ii) Formação contínua – procura “promover a atualização e a valorização pessoal e profissional dos trabalhadores”, em harmonia com “as políticas de desenvolvimento, inovação e mudança da administração pública”. Esta formação é realizada ao “longo da carreira” dos trabalhadores, integrando “a aprendizagem formal, a não formal e a informal”. Objetiva o “aperfeiçoamento profissional, a aquisição de competências e o desenvolvimento de competências para transferir a aprendizagem para o exercício do trabalho e continuar a aprender de forma autónoma e contínua ao longo da vida” [4]; iii) Formação para a valorização profissional – “visa o reforço das competências profissionais dos trabalhadores com vista à integração em novo posto de trabalho, na sequência de reorganização de órgãos ou serviços” [4].
Financiamento
Em Portugal, o sistema de financiamento da Educação e Formação Profissional (EFP) caracteriza-se “pela divisão em três estruturas principais dentro das quais se deverão enquadrar as diferentes entidades formadoras”, sendo que essas estruturas são: “financiamento privado (pelos próprios indivíduos ou pelo sector empresarial)”; “financiamento público (através do orçamento de Estado)”; e “co-financiamento através do FSE (com verbas comunitárias e nacionais)” [6].
Acrescenta-se que que “os mecanismos de atribuição de verbas para a EFP são idênticos em todos os casos, independentemente do tipo de formação, variando unicamente em função da fonte de financiamento, que poderá ser o FSE ou o orçamento de Estado” [6].
Neste mesmo sentido, o antigo IQF referia que “a caracterização da estratégia de financiamento da formação desenvolvida para o mercado (…) engloba a identificação das principais fontes e origens dos recursos financeiros utilizados, mas também a análise do grau de importância e dependência destes operadores de formação relativamente às diferentes fontes de financiamento” [7].
No caso da saúde, da rede hospitalar, o financiamento da formação “é, na sua maioria, suportado pelos programas do Fundo Social Europeu, o que significa que as actividades de formação podem variar com o volume desse financiamento”, sendo que por esse motivo, a formação nos organismos do SNS tem um “estatuto de actividade secundária” [2].
“A maior parte das actividades formais de EFP em Portugal são co-financiadas pelo FSE, beneficiando de fundos comunitários e nacionais. O FSE constitui uma fonte de financiamento fundamental para a formação profissional em Portugal, devendo ser considerado como uma extensão do sistema de financiamento público” [6].
Em termos do Orçamento de Estado, “apenas 1% do orçamento destinado à saúde é investido na área educativa” [8], ou seja, na formação dos profissionais de saúde, manifestando-se pouca preocupação sobre este domínio.
Os Centros de Formação dos serviços do SNS, sem orçamentos específicos, previamente atribuídos, “vêem-se obrigados a adaptar as necessidades de formação das organizações ao financiamento recebido do exterior [2]. A “ausência de uma preocupação estratégica em torno da formação, preocupação que não pode existir com a ideia de que esta actividade tem que estar sujeita a um estatuto de sobrevivência, dependendo da sua capacidade para se autofinanciar à base de recursos incertos. Se a mudança passar pela formação, é bom que se consolidem as condições objetivas em que há de ocorrer o seu financiamento. A formação para a modernização e a qualidade tem que ser assumida como um custo do processo e não como uma questão acessória e independente” [2].
Após alguns anos de ausência de concursos para financiamento de formação profissional dirigida aos profissionais de saúde, têm vindo a abrir desde o ano 2017 concursos para financiamento de formação de profissionais do setor da saúde ao abrigo do Programa Operacional Inclusão Social e Emprego.
Conclusões
O Sistema de Saúde Português, representado essencialmente pelo Serviço Nacional de Saúde, é dotado de diversas unidades de saúde que têm organismos próprios pela gestão da formação, responsáveis pela manutenção dos portefólios de competências dos profissionais de saúde, desde o seu ingresso nas instituições ao términus do desempenho laboral.
As funções dos profissionais de saúde encontram-se reguladas na lei com a garantia da formação contínua por forma a uma melhor satisfação das necessidades da população.
Verifica-se uma classificação regulada das modalidades de formação, a caracterização do seu funcionamento e objetividade.
Assiste-se à ausência de investimento na formação por parte das organizações de saúde e a uma forte dependência dos fundos europeus para execução de formação continua aos profissionais.
Referências
[1] Sousa, P. A. F. (2009). O sistema de saúde em Portugal: realizações e desafios. Acta Paul Enferm, 22, pp.884-894.
[2] Rodrigues, L. A. C., Ginó, A., Sena, C. & Dahlin, K. (2002). Compreender os Recursos Humanos do Serviço Nacional de Saúde. Lisboa: Edições Colibri.
[3] Lei n.º 48/1990, de 24 de agosto. Diário da República, 1.ª Série – N.º 195 – 24 de agosto de 1990. Assembleia da República.
[4] Decreto-Lei n.º 86-A/2016, de 29 de dezembro. Diário da República, 1.ª Série – 3.º Suplemento – N.º 249 – 29 de dezembro de 2016. Ministério das Finanças.
[5] Grupo Técnico para a Reforma da Organização Interna dos Hospitais (2010). A Organização Interna e a Governação dos Hospitais. Matriz organizacional para os hospitais do SNS. Lisboa.
[6] Centeno, L. G. & Sarmento, A. L. (2001). O financiamento da educação e formação profissional em Portugal. Perfil do sistema de financiamento. Centro Interdisciplinar de Estudos Económicos, Thessaloniki (Pylea), Grécia.
[7] Instituto para a Qualidade na Formação (2004). Práticas de Financiamento da Formação em Portugal. Lisboa: IQF.
[8] Baganha, M. I., Ribeiro, J. R., & Pires, S. (2002). O sector da saúde em Portugal: funcionamento do sistema e caracterização sócio-profissional. Coimbra: Oficina do CES.
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