Entrevista a Graça Freitas, Diretora-Geral de Saúde

“As pessoas perderam o medo das doenças. Se perguntarmos o que é a poliomielite a um jovem, não tem a mínima ideia”

Entrevista por Fernando Barbosa, Durão Carvalho, Abraão Ribeiro e Cátia Vilaça

Texto e fotografia por Cátia Vilaça

Pouco mais de um ano depois de se efetivar no cargo de Diretora-Geral de Saúde, Graça Freitas fala-nos da sua experiência em Saúde Pública, nomeadamente no Plano Nacional de Vacinação, que lidera há mais de 20 anos. Adepta da advocacia em vez da imposição, está confiante que Portugal vai escapar aos movimentos organizados anti-vacinação. A Diretora-Geral de Saúde fala-nos ainda da importância da comunicação e do trabalho de equipa na hora de lidar com os surtos e da cooperação com os restantes países da CPLP.

O facto de ter nascido em Angola ter-lhe-á dado alguma apetência para a escolha da Saúde Pública?

O meu pai era funcionário público da Administração do Território de Angola e de facto vivemos em muitos concelhos, muitas localidades pequenas, apesar de a minha escolaridade ter sido feita num colégio numa cidade. Não sei se a figura do delegado de saúde, muito importante naquele território, terá tido influência. O delegado de saúde acumulava praticamente todas as funções que hava para acumular num determinado espaço administrativo. Fui sabendo o que era a Saúde Pública, e para mim Saúde Pública era pensar mais além, de forma mais vasta do que apenas numa pessoa individual, num doente e numa relação médico-doente.

O Plano Nacional de Vacinação tem sido uma das suas principais bandeiras.

O Plano Nacional de Vacinação é um pouco a obra da minha vida. Só houve até hoje uma outra diretora-geral antes, a Dra Maria Luísa Vanzeller, e o Plano foi criado durante o seu mandato, pelo que tem 54 anos. Eu estou com ele desde 1996, portanto há 23. À medida que eu vou envelhecendo e o programa também, a minha quota parte nele vai aumentando, e está prestes a tender para metade da vigência. O programa tem muito de gestão e logística, não é só ciência, inspiração ou boas vacinas. Tem muito de evidência científica e de boas práticas mas se não houvesse uma grande capacidade de organização e de logística não havia um bom Plano. Quando cá cheguei a minha grande preocupação foi aprender, e a segunda foi rapidamente perceber que sozinha não fazia nada, por isso na altura pedi ao diretor e ao subdiretor-geral que arranjassem alguém para me ajudar, e foi assim que surgiu a Comissão Técnica de Vacinação. Eu tive noção de que aquilo era uma tarefa muito complexa, que mexia com a vida de muitos milhares de pessoas, e portanto tinha de ter um forte referencial científico à minha volta. Depois também percebi que não me servia de muito a ciência se não tivesse a capacidade de por vacinas em tempo útil nos pontos de vacinação. Logística e organização eram tão importantes como a ciência. Eu percebi em poucos meses que ou me mexia e tinha concursos e financiamento ou chegava ao início do ano e não tinha as vacinas. Com o Plano Nacional de Vacinação percebi que as coisas tinham de ser planeadas, ter financiamento assegurado, haver uma capacidade de governação e de gestão de programas. As pessoas às vezes diziam para fazer uma boa norma ou fazer um bom documento porque essa era a minha responsabilidade, mas a minha responsabilidade é que as pessoas se vacinem. Eu não gosto de fazer normas ou documentos que depois não servem para nada. Quando se faz uma norma técnica, seja clínica, organizacional ou outra, faz-se porque há uma necessidade de ter um procedimento a cumprir para melhorar boas práticas. Nesse sentido eu dizia que o meu papel não terminava com a norma, terminava com a sua aplicação, neste caso com a picada e com a ausência da doença, ou seja, é preciso termos a certeza que andamos a picar pessoas e que as doenças depois não aparecem. A picada não chega, é preciso ir além e avaliar o resultado.

O que sente quando alguns dos seus colegas alegam que algumas vacinas não são precisas para nada e causam até efeitos secundários? Têm surgido em alguns países europeus focos de resistência à vacinação. Que análise faz da situação em Portugal?

Em Portugal não temos tido, não sei se por sorte ou se porque as coisas têm corrido muito bem na vacinação, movimentos organizados anti-vacinação. Há pessoas isoladas, ou de algumas pequenas comunidades, que por qualquer motivo não se querem vacinar. Movimentos anti-vacinação organizados como noutros países, como os EUA, de facto não há. Poderemos não vir a ter porque agora está a surgir o fenómeno contrário, ou seja, as pessoas que estão contra esse movimento. Há até um pedido importante para que o Facebook bloqueie os grupos anti-vacinas de se pronunciarem, porque são lesivos. O continente americano inteiro não tinha sarampo desde o final da década de 90. O sarampo não é uma doença benigna, é uma doença que mata, e esses países tinham-na eliminado. Os poucos casos que havia de sarampo na América eram importados da Europa. Com esta história dos movimentos anti-vacinação e de as pessoas não se vacinarem, voltaram a ter sarampo, e segundo as últimas estatísticas nos EUA morreram 48 pessoas, a maior parte delas abaixo dos 10 anos, com sarampo. Ora, isto é um retrocesso da civilização. Por que é que isto acontece com esta dimensão? Não é apenas por motivos filosóficos ou religiosos. Eu creio é que as pessoas perderam o medo das doenças porque ninguém as vê. Se perguntarmos o que é a poliomielite a um jovem, não tem a mínima ideia.

A DGS tem um departamento de Relações Internacionais. Em que medida decorre a colaboração e a interação da DGS com os países da CPLP?

A nossa colaboração a nível da vacinação e da saúde materno-infantil em geral, bem como noutras áreas, é sobretudo no domínio da formação e da troca de experiências, portanto nós vamos aos países e os respetivos representantes vêm cá e trocamos informações. Não tem havido, por exemplo, intercâmbio de vacinas ou de medicamentos porque existe legislação europeia que não permite que os produtos farmacêuticos fluam com essa facilidade. Por vezes não resulta tão bem como gostaríamos e surgem os tais surtos com possibilidade de importar doenças, mas também podemos importar doenças da Europa, e neste momento o sarampo está em toda a Europa. Em muitos países europeus as pessoas, com esta falsa segurança de que estão seguras, deixaram de se vacinar e voltaram a ter surtos.

Para além dessa interação, da formação, do apoio e de alguns protocolos que se fazem, não acha que se podia fazer muito mais com países da CPLP neste domínio?

Eu gostaria, mas tenho para mim que isto é uma questão bilateral, ou seja, tem de ser um movimento de ambas as partes. Já houve, com Angola nomeadamente, alguns contactos no sentido de se melhorar toda a logística da rede de frio e de ajudar na gestão das questões da vacinação. Estas questões também flutuam com as contingências das mudanças de governo, portanto tudo depende do que os países entendem como auxílio necessário. Países como Cabo Verde (estive lá há pouco tempo) têm capacidade organizativa, porque têm uma boa rede de cuidados de saúde primários, têm uma boa rede de frio e infraestruturas que lhes permitem alguma segurança nessa matéria, ou seja, os países da CPLP não estão todos no mesmo nível. Há países com infraestruturas e maior capacidade e outros com menos capacidade.

Faria sentido equacionar a obrigatoriedade da vacinação?

Na minha opinião, enquanto as coisas estiverem assim não. Primeiro porque temos atingido todos os objetivos a que nos propomos, com elevadíssimas taxas de cobertura, imunidade de grupo e controlo das doenças. Por outro lado, países onde há obrigatoriedade têm taxas de cobertura miseráveis, têm surtos, têm doenças, portanto não é por decreto-lei. Já agora, em 1962, Salazar tornou obrigatórias duas vacinas e sem sucesso nenhum, porque não havia logística, não as comprava, não organizava e as pessoas não iam vacinar-se. Não serviu de nada e as pessoas continuavam a morrer de tétano todos os dias, de difteria, etc. Não basta ter uma lei. Nós temos é de fazer advocacia, ser provedores das vacinas, ajudar, incentivar, facilitar e esclarecer. As pessoas têm medos e têm mitos em relação à vacinação, como em tudo na vida, mas muitas vezes esclarecidas, quando tiram dúvidas, quando podem exprimir o que lhes vai na alma, optam de forma consciente e protetiva, porque mais vale prevenir do que remediar.

Existe alguma estratégia de cooperação com Timor? A única cooperação portuguesa que se concretizou na área da Saúde foi via SUCH e uma equipa de engenharia, e para um hospital muito específico. Que opinião tem sobre isto?

A DGS tem esta incumbência e temos uma divisão especificamente para os países da CPLP mas há aqui uma ressalva: nós estamos em alinhamento total com o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Quem define a política externa do nosso país é o Ministério e o Instituto Camões. Nós de certa forma alinhamos os nossos procedimentos de acordo com o que for o entendimento do Ministério. Temos, não com Timor mas com os países da CPLP, há décadas, um programa de envio regular de doentes que não podem ser tratados nesses países e que são tratados em Portugal. Não é esporádico, é uma coisa continuada. Há juntas médicas em cada um dos países da CPLP. Essas juntas médicas identificam doentes elegíveis para tratamento em Portugal. Nós aqui validamos estas situações e esses doentes são tratados em Portugal. Se repararmos, alguns vêm fazer hemodiálise, portanto são colaborações para a vida. Tivemos há pouco tempo aqui na DGS o embaixador de Cabo Verde, que exprimiu a gratidão do país para com as centenas e centenas de doentes que ao longo destes anos Portugal tem tratado. Agora Cabo Verde está a ficar autónomo na área da hemodiálise. Na Praia já tem uma unidade de hemodiálise e está a fazer uma segunda no Mindelo. Cabo Verde é exemplar nesta questão da hemodiálise.

Está há um ano e pouco como Diretora-Geral. Já teve de enfrentar vários surtos epidémicos: dois de Legionella, mortalidade por excesso de frio ou de calor...

Os surtos acontecem. O mais curioso é que na fase em que eu estava a substituir o Dr. Francisco George, antes do primeiro surto de Legionella, que foi o do Hospital de São Francisco Xavier, houve um surto de varicela que nem foi notado. Eu não era Diretora-Geral sequer há 12 horas quando recebi um telefonema a dizer que tinha um problema com varicela numa unidade confinada. Essas ocorrências fazem parte do dia-a-dia.

Até podem ser mais frequentes com as alterações climáticas.

Acho que sim. A doença dos Legionários resulta de uma bactéria que existe em todo o lado. Também é preciso ver que há 20 ou 30 anos, se não se fizesse uma análise rápida à urina não se detetava que o doente tinha uma pneumonia causada por Legionella. Estes surtos fazem parte da nossa rotina. Temos de ter mecanismos para rapidamente os detetar, rapidamente os tipificar e rapidamente os controlar. A parte boa desta questão é que enquanto fui subdiretora e mesmo antes de o ser, como tinha a divisão de Doenças Transmissíveis, lidava com os surtos. Quando o Prof. Sakellarides foi Diretor-Geral, no Natal de 1997, tivemos a gripe das aves, portanto eu já ando a lidar com os surtos há muitos anos, não aparecia era na televisão. É sempre uma atividade de grande stress porque tem de se ser rápido a fazer tudo. Tem de se ser rápido a detetar, a identificar as causas e a interromper a cadeia de transmissão para controlar o surto. Os engenheiros e os técnicos de saúde ambiental têm sido tão importantes como os clínicos. São equipas de pessoas que cada vez estão mais oleadas para fazer as coisas rapidamente, e no surtos de Legionella todos nós constituímos uma espécie de rede que rapidamente consegue dar resposta. Portanto, não foi uma espécie de fatalismo porque não foi só a mim que aconteceu, nem de milagre porque eu já estou com estas questões dos surtos há muitos anos. Um surto gera sempre ansiedade e uma grande carga de trabalho. É sempre muito confuso porque o problema dos surtos também se gere a partir da comunicação, e a comunicação é um processo que nem sempre se controla.

As cúpulas das Direções Gerais têm jogado bem com a comunicação, porque efetivamente nessas situações de surtos têm transmitido para a opinião pública a sensação de que estão a dominar a situação e têm acalmado.

A facilidade em comunicar tem a ver com a tranquilidade por sabermos que está a ser feito tudo o que é possível. Quando o Dr. Francisco George ou eu dizemos que foi reunido o dispositivo de Saúde Pública ou que estão a ser feitas análises na água, isso está de facto a ser feito, portanto essa tranquilidade corresponde. Comunica-se com base em trabalho, em organização. Tudo o que está organizado, programado, planeado, acaba por ser mais fácil.

A DGS tem competências na qualidade do ar e outras questões ligadas à engenharia. Os recursos são suficientes em termos quantitativos? Do outro lado, há interlocutores adequados?

A DGS nesta matéria não está nem consegue estar sozinha. A nível nacional nós temos parceiros nas questões relacionadas com o ambiente propriamente dito, sendo a Agência Portuguesa do Ambiente o nosso parceiro privilegiado. Depois temos a sorte de ter uma boa relação com as estruturas das ARS. A esse nível, e a nível dos departamentos de Saúde Pública há engenheiros, e isso dá-nos uma grande segurança e tranquilidade quando é preciso fazer determinadas coisas. Nos hospitais obviamente que existem equipas, São as suficientes? Nunca ninguém acha que tem os recursos suficientes. O que mais nos preocupa ao nível da DGS é o impacto do ambiente na saúde humana, sendo que a montante tem de estar toda a questão das engenharias, das infraestruturas e todas essas coisas. Do ponto de vista da DGS, o que me preocupa é ter boas avaliações do risco e bons mecanismos de monitorização para saber como é que as coisas funcionam. As ARS e os departamentos de Saúde Pública têm sido exemplares, bem como os hospitais e o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge. Aqui funcionam verdadeiramente as parcerias.

Foi publicado há cerca de um ano o despacho sobre alimentação saudável [11391/2017, que determina condições para a limitação de produtos prejudiciais à saúde nos espaços destinados à exploração de bares, cafetarias e bufetes, pelas instituições do Ministério da Saúde], e às tantas aparece na comunicação social que a DGS permite pastéis de nata, rissóis e coisas desse género. Qual a posição da DGS?


Como sabe, isso foi uma posição da tutela e nossa também, no sentido de, pelo exemplo, tentar que não houvesse alimentos nocivos à saúde disponíveis nos estabelecimentos hospitalares. Depois há a questão da fiscalização. Nós aqui também temos um refeitório, e fazemos tudo para que a alimentação seja saudável. Damos formação aos nossos profissionais, criamos ementas saudáveis, criamos alternativas, e obviamente compete-me a mim, à gestão da casa, verificar se o refeitório está em incumprimento e todos os dias tem o que não pode. No entanto, não podem esperar que tenhamos uma atividade inspetiva. O que temos de ter é escolhas saudáveis à nossa disposição. Se isso estiver acautelado eu sinto-me satisfeita. Creio que compete a cada gestão de cada administração, de cada estabelecimento, zelar por isso.

Graça Freitas nasceu em Angola, no Huambo. Iniciou o percurso académico em Luanda e concluiu-o em Lisboa, após a descolonização. Começou a atividade profissional no Hospital de Santa Maria e escolheu a especialidade de Saúde Pública, tendo depois ingressado no Centro de Saúde da Ajuda. Em 1996 foi convidada para chefiar a Divisão de Doenças Transmissíveis da Direção-Geral de Saúde, o que implicava gerir o Programa Nacional de Vacinação. Foi subdiretora geral durante 12 anos, assumindo o cargo de Diretora-Geral quando Francisco George se afastou, inicialmente em regime de substituição e, desde 1 de janeiro de 2018, como efetiva.

Entrevista publicada na edição nº 91 da TecnoHospital

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