O Doente e a Gestão da Saúde - Um primeiro apontamento

O DOENTE E A GESTÃO DA SAÚDE – UM PRIMEIRO APONTAMENTO

Paulo Salgado, Administrador Hospitalar

Gostaria de frisar que a minha colaboração na Revista TecnoHospital só pode interpretar-se como um contributo cujo saber resulta de múltiplas experiências e do que aprendi com doutos peritos em diversíssimas matérias que vamos lendo e relendo, e que repousam em revistas e livros interessantes, de cuja profundidade não deve duvidar-se. Feita esta ressalva, vou atrever-me a tecer algumas notas sobre o entendimento e a percepção do que me vai ficando sobre o ‘mundo’ da gestão da saúde, no nosso país. Fá-lo-ei por etapas em cada número da Revista.

Deixo ao leitor alguns excertos que podem, eles sim, provocar algum interesse. Trata-se de citações mais extensivas para uma compreensão do que se pretende com esta ideia, deixando algumas reflexões.

Primeira: A percepção do doente face à sua situação – a dignidade como princípio e valor humano?

O que nos apresentam o saboroso excerto do Diário VIII, de Miguel Torga (1), e a excelente reflexão de João Lobo Antunes sobre as questões que este autor transcreve de Rennée Fox e das que constam no capítulo 2, “O consolo das Humanidades” (2), constituem, por si, momentos de enorme sensibilidade face à “voz da doença”.

Vejamos.

De Miguel Torga (Diário VIII – publicado em 1959, cuja venda fora proibida pela polícia política), respigo o seguinte apontamento, após o seu internamento em 27 de Outubro de 1957:

«Porto, 5 de Novembro de 1957 – O pior da doença é a impessoalidade a que ela nos reduz. Sem nenhuma espécie de vontade preservada – quanto à intimidade, devassada por dentro e por fora, nem é bom falar disso -, o indivíduo sente-se apenas um manequim dorido que mãos estranhas ou familiares manobram com a doçura de uma paciência exausta… Dum ser afirmativo e facetado, resta uma passividade amorfa, almofada entre almofadas, onde o que nestas ocasiões mais se deseja se espetam agulhas ritualmente…E, embora pareça estranho, o que mais se deseja nestas ocasiões não é melhorar: é simplesmente ascender de farrapo humano a homem, ou deixar de existir».

De João Lobo Antunes, retiro uma frase de Rennée Fox, que o ator amavelmente traduz:

«Saúde, doença e cuidados médicos estão integralmente ligados a alguns aspectos mais básicos e transcendentes da condição humana. A concepção do ser humano, o nascimento, a sobrevivência e o crescimento; as capacidades físicas, emocionais e intelectuais e o desenvolvimento; sexualidade; envelhecimento, mortalidade e morte são o foco nuclear da saúde, doença e medicina. A prática da medicina, bem como a experiência da doença convocam os problemas críticos do significado – questões fundamentais sobre os ‘porquês’ da dor, sofrimento, angústia; os limites da vida humana; a morte; e as suas relações com o mal, o pecado e a injustiça,»

E acrescenta João Lobo Antunes: «Para alguns pode parecer insólito o interesse devotado à espiritualidade neste tempo em que a ‘libido scientia’ surge como quase insaciável, alimentada pelos triunfos – alguns deles, diga-se em boa verdade, ilusórios – da medicina moderna».

De resto, o depoimento magnífico que José Cardoso Pires relata no seu De Profundis é revelador da suma importância que os profissionais de saúde deverão ter presentes no exercício da sua actividade quotidiana.

Nestes textos encontramos o valor dignidade, como um valo, um construendo que vem sendo consagrado nas Constituições e que é um atributo intrínseco das mulheres e homens, seja qual for a sua natureza ou condição.

Segunda: A medicina é feita por homens – o livre-arbítrio e a responsabilidade?

Começo por repetir uma história cuja veracidade pode ser duvidosa, mas que se adequa ao pretendo referir:

Conta-se que numa reunião social, Einstein se encontrou com o actor Charles Chaplin. No decurso da conversa, Einstein disse a Chaplin:

-"O que sempre admirei em si é que a sua arte é universal: todos o compreendem e o admiram".

Ao que Chaplin respondeu:

- "A sua é muito mais digna de respeito: toda a gente o admira e praticamente ninguém o compreende".

Estamos tão habituados a ouvir repetidamente, com várias gradações e matizes, que os médicos têm uma posição profissional que lhes confere “autoridade”, que têm “liberdade” de escolha formalmente outorgada pelo célebre juramento de Hipócrates, como uma espécie de liberdade formalmente consentida, mas claramente objectivada no quotidiano – aspectos axiológicos que raramente questionamos dada a natureza desta liberdade-responsabilidade.

Mas devemos perguntar: será que os médicos são livres de agir com base no seu juramento? Será a sua liberdade um verdadeiro livre-arbítrio ou estarão sujeitos a condicionalismos externos?

Com o fundamento de que eles controlam a relação com o doente e a relação e os recursos que utilizam ou fazem utilizar, são ‘forçados’ a serem determinantes nas escolhas clínicas que tomam e, então, são convidados a ser também gestores – o que não está mal. Mas o que está mal, do meu ponto de vista, é o predomínio de uma cultura quase exclusivamente contratualista que se pretende impender sobre eles. Sou claro: na verdade, as acções dos médicos são ou não são determinadas por forças fora do seu controlo?

Somos levados a questionar estes aspectos por duas ordens de razões: a primeira é que a liberdade do médico é sempre limitada face ao doente que está diante de si (não se fala abundantemente de que falamos em doentes e não em doenças?) e, pour cause, persistirão dúvidas quando se trata de olhar para um certo ser que está diante de si; a segunda razão está na responsabilidade subjacente à sua actividade e, igualmente, ao sistema de controlo que, de alguma forma, também os médicos têm de exercer. O controlo é feito a partir da liberdade e responsabilidade do médico, não a partir de outras entidades, assumam elas a forma que assumirem. Contudo, é no domínio dos recursos que, directa ou indirectamente, são obrigados a tomar em linha de conta: a contenção, a racionalidade, a probidade e a eficiência. E aqui está a introduzir-se uma questão muito importante: como se procede ao equilíbrio entre liberdade/responsabilidade e controlo, sendo certo que temos vindo a ensaiar modelos de gestão cuja fiabilidade é frequentemente posta em causa.

Terceira: A gestão como actividade partilhada – a cogestão em saúde?

Constatamos e aceitamos que o caminho tem sido o da gestão conseguida em modelos de cogestão[1], com base num compromisso que envolve diversos actores. Nos hospitais, em particular a gestão, efectuada nos três níveis[2].

A cogestão que abordo aqui pode ser entendida, do meu ponto de vista, em três frentes: (a) a intervenção das entidades governamentais que ditam modelos de governance  – uma clara intromissão (necessária?) do poder, em nome do interesse público; (b) a colaboração e partilha de diversos sujeitos activos que procuram ser integradores (têm conseguido?) dos seus modos de encarar (vide, e.g., a posição assumida pelos directores clínicos e directores de enfermagem); (c) a introdução de agentes “colaboradores” de directores de serviço e de departamento que, em muitas situações, constituem uma forma de mitigar o diálogo entre a administração de topo e as chefias intermédias.

Não sendo possível uma “racionalidade gestionária hegemónica, estruturada segundo um eixo vertical e hierarquizado de poder”[3], então será preferível partilhar – defende-se –, com diferentes gradações, o planeamento, a direcção/chefia, a organização e o controlo, como alternativa, dir-se-á, à gestão vertical. Tem sido este um compromisso logo assumido em 1977[4] e depois matizado de maior ou menor intervenção governamental nos diversos e profusos diplomas legais. Ora, este compromisso tem servido para compatibilizar interesses corporativos, mais do que para construir modelos democráticos horizontais de gestão. Acresce o facto de que os administradores hospitalares são chamados a “colaborar”, considerados intrusos, na gestão de nível intermédio, o que nos leva a questionar se o actual modelo de “cogestão” representa vantagens e se, tal como estão implementadas servem a governação dos hospitais e, mais importante, o Doente.

Esta é uma questão a que voltarei proximamente.

Nota: Paulo Salgado escreve de acordo com a antiga ortografia.


[1] Custará a aceitar esta ideia de cogestão? Não será este o conceito existente?

[2] É conhecida a pirâmide dos níveis de gestão: de topo (estratégia); intermédio (táctica); operacional (execução) e a formulação da sua articulação, cujo desenho tem sido defendido por distintos pensadores da disciplina de gestão da saúde.

[3] Usando uma expressão de F. L. Guizardi et al., in O conceito de cogestão em saúde: reflexões sobre a produção de democracia institucional, Physis: Revista de Saúde Coletiva.

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312010000400010.

[4] A legislação de 1977 previa a participação do engenheiro hospitalar – quanto a mim com razão de ser, pois as instalações e equipamentos e a sua manutenção, seja por pessoal interno, seja por terceiros representam uma percentagem elevado das despesas dos hospitais.

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