António Arnaut ou o inconformismo ativo

"Não me conformo com as pequenas injustiças. Aceito as grandes, porque são inevitáveis, como as catástrofes, e atestam a impotência dos deuses. Aquela criança, descalça, apenas precisava de uns sapatos. Se tivesse nascido sem pés, não era tão grande a minha revolta".

Excerto da alocução de António Arnaut durante a sessão do seu Doutoramento Honoris Causa, pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, a 29 de maio de 2014.

Hoje recordamos a entrevista concedida à Tecnohospital nº 17 (2004) pelo homem que acreditava que o Serviço Nacional de Saúde não fosse sustentável, a democracia também não o seria.

“QUEREM DESTRUIR O SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE”

Não há voz mais crítica das últimas reformulações na Saúde do que a do mentor da Lei que a transformou num direito inalienável de qualquer cidadão.
António Arnaut lamenta a forma como o Serviço Nacional de Saúde tem sido tratado pelos sucessivos governos, compadece-se com a vida “acidentada” de
uma conquista que alterou “estruturalmente” a sociedade portuguesa, mas, sobretudo, lastima os esforços recentes de empresarialização do sector
público. O homem cujos méritos políticos se confundem com a criação de um sistema que colocou o país no décimo segundo lugar do «ranking» mundial da
qualidade em cuidados de Saúde receia mesmo que em curso esteja o seu desmantelamento.

TecnoHospital (TH) - Vai comemorar-se a 18 de Setembro 25 anos da publicação da Lei do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Sendo o «pai» dessa Lei, como avalia a sua aplicação?


António Arnaut (AA) - Sou o autor da Lei, porque fui eu que a mandei elaborar, enquanto ministro dos Assuntos Sociais. Mas não inventei o SNS. Fui deputado à Assembleia Constituinte, participei na discussão da Lei e, curiosamente, assinei-a quando foi publicada em Diário da República, em 1979, uma vez que era, na altura, vice-presidente da Assembleia da República e presidente em exercício desse mesmo órgão de soberania nacional. O SNS foi, portanto, instituído pelo II Governo Constitucional, em primeiro lugar porque estava previsto na Constituição de 1976, no artigo 64 º, e porque era absolutamente necessária uma reforma profunda da Saúde. Depois, a Lei vigorou tal como havia sido criada até Arlindo Carvalho, ministro da Saúde, a alterar, embora sem a pôr em casa. Quando começou de facto a ser adulterada, fruto de um projecto nítido de destruir o SNS, foi agora com o Governo do PSD/CDS.


TH - O que o leva a crer que querem destruir o SNS?

AA - Em primeiro lugar, por tratarem o SNS como uma questão contabilística.
Ora o SNS não pode ser reduzido a esse plano. Está consagrado na Constituição da República Portuguesa e é talvez dos conceitos que mais resistiu às tentativas de destruição da filosofia humanista presente na Lei soberana. Claro que foi objecto de pequenos ajustamentos. Um deles ocorreu logo na primeira revisão de 1982. Isto porque a menção à? gratuitidade dos serviços de Saúde havia merecido algumas críticas, uma vez que levaria a crer que o pagamento de taxas moderadoras era inconstitucional. Foi isso mesmo que concluiu a Comissão Constitucional, através de um parecer subscrito por Vital Moreira. Uma conclusão errada, dado que se a Constituição dizia que o SNS era universal, geral e gratuito, a Lei que instituiu o SNS previa as taxas apenas para moderar o consumo excessivo. Mas, de facto, passou a figurar na Constituição que o SNS é tendencialmente gratuito. Acontece que, hoje, há pagamentos por prestações de cuidados de Saúde e isso é que é verdadeiramente inconstitucional. Daí que eu denuncie esses ataques a uma criação que representa claramente a maior reforma social do século XX.


TH - Marca a diferença entre o 24 e o 25 de Abril de 1974?

AA - Marca uma mudança profunda e não só do ponto de vista formal. O SNS alterou estruturalmente a sociedade portuguesa. Basta pensar que, até ao 25 de Abril, a Saúde era tratada como se fosse uma mercadoria: só quem tinha dinheiro é que procurava um médico. Só os pobres - os chamados indigentes - é que poderiam obter um atestado que lhes possibilitava o acesso a cuidados gratuitos. Já a partir do 25 de Abril e da Constituição, as pessoas passaram a ter um direito real de protecção da Saúde e o Estado é obrigado a garantir a efectivação desse direito, apenas com os limites decorrentes dos meios disponíveis. Mas, a meu ver, os 8,6 por cento do PIB que são usados na Saúde serviam perfeitamente para termos um SNS melhor.

TH - E, a seu ver, por que razão não temos?

AA - Desde logo porque o SNS tem defeitos, como qualquer outro sistema «pesado». Repare-se que integra um quinto dos funcionários públicos e um sexto do Orçamento de Estado e abrange praticamente os nove milhões de portugueses. Acrescente-se a isso a falta de atenção de alguns governos e veja-se como é susceptível de ser i perfeito. No entanto, é um erro afirmar que a gestão que é feita no seio do SNS é profundamente ineficaz e que só a dos privados é que é eficiente.


TH - Essa é uma das grandes críticas que têm sido feitas ao SNS.

AA - O que é duplamente errado, porque os números são falaciosos. A gestão dos privados pode, efectivamente, conduzir a menos gastos por os cuidados de Saúde não serem prestados decentemente: porque não são fornecidos
medicamentos, porque as consultas são a correr ou porque o tempo de internamento é menor.

TH - A Associação Portuguesa dos Médicos da Carreira Hospitalar ainda agora veio a público denunciar essa situação.

AA - Com toda a legitimidade. Porque, veja-se, uma gestão assim acaba por escolher nichos de mercado. Rejeita doentes mais onerosos, dá preferência àqueles que pagam logo os cuidados prestados, fruto designadamente de possuírem seguros de Saúde, até ao ponto de só aceitar doentes segurados. Ora, a Saúde não pode ver-se apenas sob o prisma económico, tem de entender-se no plano social. E mesmo do ponto de vista financeiro é bom que não esqueçamos que curar uma doença a um cidadão é um investimento público com retorno, uma vez que a pessoa vai voltar a ser capaz de trabalhar de produzir e não vai sobrecarregar a Segurança Social.

TH - Apesar das críticas que são feitas ao SNS, a verdade é que a Organização Mundial de Saúde nos colocou em décimo segundo lugar no «ranking» da qualidade dos cuidados prestados.

AA - Apesar de tudo, chegámos, de facto, a 2000 com esse lugar no «ranking» e só por aí se pode ver como a maior parte das críticas é injusta. Veja-se que, em 1974 ou mesmo em 1978, a esperança média de vida em Portugal era de sessenta e poucos anos. Agora está bem acima dos 70. Por outro lado, em 74, a mortalidade infantil era de 33, 34 óbitos por mil e hoje é de cinco e meio por mil, o que representa um dos melhores índices do mundo. Foi, em suma, um salto qualitativo dado em 25 anos muito acidentados, porque o SNS teve, desde logo, a oposição de muita gente. Oposição da direita, dos médicos, dos lóbis da Saúde, daqueles que eu chamei de barões da Medicina, e dos interesses económicos. De resto, a Lei foi publicada em Setembro de 79, mas só começou a ser regulamentada um ano depois, no governo de Pintasilgo. Depois vieram os governos da Aliança Democrática, que a deixaram para trás. E mesmo alguns governos socialistas, que tinham por obrigação ter mais cuidado, também a deixaram um pouco à deriva. Quem, na verdade, começou a privatização da gestão dos hospitais foi um ministro que se diz socialista, chamado Correia de Campos, que fez a experiência da empresarialização. Ou seja, em termos práticos, o SNS não chega a ter 20 anos de aplicação regular, sempre sem grande entusiasmo.


TH - É natural que os privados lancem o olho ao sector da Saúde? 

AA - Claro que é. O SNS teve, há dois anos, um bilião e 200 milhões de contos de Orçamento, falando em moeda antiga. Além desse montante elevadíssimo, há que contabilizar as despesas que os próprios cidadãos têm, por, designadamente, participarem nos medicamentos, nos exames, nas consultas - está mais ou menos estudado que suportam cerca de 40 por cento dos gastos em Saúde. Ora, verbas somadas, isto dá um valor astronómico, naturalmente apetecível pelas empresas privadas: quer pelas multinacionais que operam na área, quer pelas companhias de seguros. Temos em Portugal, neste momento, um milhão e 600 mil apólices de seguros de Saúde e há uma imensa propaganda para fomentar estas apólices, o que é um logro. Desde logo porque as companhias só fazem seguros de pessoas saudáveis e não de pessoas com doenças crónicas. Mas também porque para ter um seguro de Saúde que cubra todas as situações, tem de despender-se um valor altíssimo.

TH - Tem receio que o SNS acabe mesmo destruído?

AA - Não, destruído ele não vai ser. O mercado da Saúde é apetecível para as multinacionais, que até aqui não tinham ainda entrado a não ser na área dos medicamentos, mas, além da garantia que nos dá a Constituição, existem sempre as forças progressistas do país, incluindo as do PSD, que não permitirão a destruição de uma grande conquista social do 25 de Abril. Claro que este actual ministro da Saúde gostaria que isso acontecesse. É um gestor que fez carreira nos Melos - também bastante interessados na Saúde -, que foi para o Governo com um projecto deliberado de destruir o SNS. Mas? não vai conseguir!

TH - Fez a experiência da criação de sociedades anónimas...

AA - Mas uma experiência dessa natureza não se faz com 31 hospitais, faz-se com quatro ou cinco. A questão é esta: se a gestão pública é má, se a gestão no seio do SNS não é eficaz, há que reformá-la. O que não se pode é querer passar a gestão para as mãos de privados. Há é que alterar as regras de gestão nos serviços de Saúde, por meio de uma lei de gestão própria adaptada às necessidades. Claro que, como me debato pela eficiência do SNS, se os cuidados forem prestados por privados e pagos pelo Estado e daí resultarem benefícios para os cidadãos, não tenho qualquer objecção de fundo. O que me importa é o objectivo final. Mas tenho sérias dúvidas que essa transferência seja benéfica. Duvido que dela resultem ganhos para os cidadãos. Acredito muito mais que o objectivo seja o de passar para os privados o negócio da Saúde! Há, nomeadamente, países onde os serviços de Saúde estão sob a alçada da Organização Mundial de Comércio e não sob a da Organização Mundial de Saúde, porque são já tidos como parte integrante da actividade comercial. Ora, eu não quero que isso aconteça em Portugal.

TH - Como é que pensa que a passagem da empresarialização para a privatização dos hospitais irá ser feita?

AA - De uma forma simples e, a meu ver, previamente estudada. Os hospitais vão entrar em ruptura financeira e vai ser preciso resolver o problema - um dos primeiros vai ser, porventura, o de Viseu. Ao entrarem em ruptura, vão pedir? dinheiro ao Estado. Mas o Estado não tem. Então, só lhes resta aumentar o capital, pedindo dinheiro aos privados. Mas quem irá comprar as acções não serão nem os cidadãos em geral, nem as pequenas empresas: serão as multinacionais. E quando estas entrarem no capital está feita a privatização. Não é preciso sequer uma lei para que tal aconteça, basta que o Governo faça um decreto e autorize o aumento de capital. Isto porque os hospitais SA deixaram de estar no domínio do Direito Público para estarem no do Direito Privado. É desta forma que a maior parte dos trabalhadores tem contrato individual de trabalho.

TH - Tem saído diversa legislação que permite as parcerias público privado, não só já na concepção e construção de hospitais, mas também na própria exploração, manutenção e fiscalização. Por outro lado, a Direcção-Geral de Instalações e Equipamentos de Saúde, que concebia e fiscalizava os hospitais, está praticamente desmantelada. Como é que encara esta evolução?

AA - Faz parte da mesma estratégia de desmantelamento do sector público de Saúde. Justamente porque movimenta milhões. Admito que o Estado possa recorrer a técnicos privados para mandar fazer hospitais, tal como faz quando decide construir pontes ou universidades, mas não pode demitir-se de administrar a Saúde, da mesma forma que não pode conceder a administração da Justiça. Hoje, porém, mais parece que o Estado não quer intervir em nada, muitas vezes desculpando-se com directivas da União Europeia.

TH - Será que uma das formas de aumentar a eficiência da gestão pública do SNS é a criação de Centros de Responsabilidade Integrados, à semelhança daquele que o Prof. Manuel Antunes criou nos Hospitais da Universidade de Coimbra?

AA - Se deu resultado, porque é que não se há-de alargar esse figurino? Porque é que não se há-de, tal como ele faz, atribuir complementos de ordenado em função da produtividade para motivar as equipas? A ex-ministra das Finanças não contratou um director-geral das Finanças por um valor tremendamente alto, sob o argumento de que ele era eficiente? Pode, portanto, haver situações em que se justifique um ou outro complemento do rendimento, de forma a aumentar a qualidade e a produtividade dos serviços. Basta atentar que, por via disso, o Centro do dr. Manuel Antunes é um dos melhores do mundo no seu sector. Mas os governos não devem estar interessados em alargar este formato.

TH - Independentemente de serem PS ou PSD?

AA - Já o disse que sim. Parece que não há vontade política suficiente. Ou porque não têm tempo para se dedicarem ao SNS ou porque não têm sensibilidade para ele. Pois, às vezes, não é a falta de dinheiro que dita a inacção: é a falta de sensibilidade. Para pôr, por exemplo, os blocos hospitalares a funcionar não é preciso mais dinheiro, basta que funcionem a tempo inteiro. Porque os médicos, assim que asseguram as quatro ou cinco horas durante as quais as cirurgias funcionam, vão para as suas clínicas privadas reduzir as listas de espera.

TH - O que representa uma certa promiscuidade?

AA -? Chega mesmo a ser um escândalo. Especialmente tratando-se a Saúde de um sector tão importante para a dignidade da pessoa humana. Claro que as listas de espera nunca acabarão, mas se a produtividade dos médicos aumentasse, ficariam reduzidas a números simbólicos. De resto, também já não há médicos. Há uns anos, as faculdades de Medicina fecharam o acesso, nitidamente por interesse dos médicos e, agora, temos em falta milhares destes profissionais.


Grão-mestre da Maçonaria Portuguesa


Jurista de formação, distinguiu-se logo após a Revolução de Abril pelo trabalho político. Fundador do Partido Socialista, foi nas fileiras do PS que praticou a liberdade, igualdade e fraternidade que lhe toldam o perfil humanista. Pelo meio, teve ainda tempo de criar uma obra literária e de desenvolver na barra a advocacia.

TH - Publicou, este ano, um livro onde reúne a sua obra poética.

AA - Publiquei, de facto, um livro chamado Recolha Poética, em que reuni toda a minha obra, publicada entre 1954 e 2004. O meu primeiro livro de poesia data, realmente, de 1954, tinha eu 17 anos, e ainda hoje penso como fui capaz de falar com a Coimbra Editora para me editar os meus escritos.

TH - De onde veio essa vocação?

AA - Bom, isso não se pode definir com rigor. Todos nós temos certas vocações. Hoje, sabe-se que podem ser genéticas e, no meu caso, nem é preciso ir-se muito longe. O meu avô materno, que morreu com cerca de 100 anos, e que era das poucas pessoas da sua aldeia que sabiam? ler e escrever, teve uma enorme influência sobre mim: contava-me muitas histórias e sensibilizou-me para a questão da ficção, da fantasia e da arte em geral. Tenho, de facto, além de livros poesia, títulos de ficção e de contos, bem como de literatura forense. Dos 20.000 advogados que existem no país, 18.000 deverão ter livros meus.

TH - Mas as pessoas conhecem-no, sobretudo, como «pai» do Serviço Nacional de Saúde.

AA - Isso é verdade. Curioso é que algumas pessoas ainda pensam que eu sou deputado e abordam-me para falar sobre a Assembleia. Ora, eu saí há 20 anos. Neste momento, sou advogado, escritor, conferencista e sócio do Partido Socialista.

TH - É também Grão-Mestre da Maçonaria Portuguesa.?

AA - Sou Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano que, ao longo dos seus? 200 anos de existência, sofreu várias cisões. Como agora, em 1995, em que alguns maçons saíram? e criaram, em Cascais, a Loja Regular.

TH - Que influência tem tido a Maçonaria em Portugal?

AA - Tenho, aliás, um livro onde reflicto sobre essa influência e o que defendo é que a Maçonaria fez todas as revoluções destinadas a instaurar a liberdade em Portugal. Desde a primeira, em 1817, com o general Gomes Freire de Andrade e que fracassou, até à própria revolução republicana. Mas, a partir do momento em que temos um estado de Direito, ela não pode meter-se na política partidária. Por várias razões. Primeiro porque não é essa a sua vocação. Segundo, porque temos na Maçonaria pessoas de todos os partidos democráticos. Como instituição, ela deve representar uma reserva moral e preparar os seus membros para poderem actuar na vida civil em coerência com os valores maçónicos: da liberdade, da igualdade e da fraternidade, mas também da tolerância e respeito pelo outro.

TH - Nesse contexto, como vê as lojas maçónicas femininas?

AA - Vejo bem, porque as mulheres têm os mesmos direitos que os homens. O que acontece é que o Grande Oriente Lusitano é uma instituição masculina. Ainda assim, reconhecemos a Grande Loja Feminina, coisa que não acontece com a chamada Maçonaria Regular, que não admite mulheres e, também ao contrário do Grande Oriente Lusitano, impõe a crença em Deus.

TH - Como encararia uma candidatura a Presidente da República?

AA - Essa questão já se pôs várias vezes, mesmo publicamente. Mas, muito sinceramente, para mim, ela não se me põe. Não considero que o país precise do meu contributo nessa matéria.

Entrevista conduzida por Abraão Ribeiro e Fernando Barbosa

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