A formação médica em Portugal na era dos Centros Clínicos Académicos

  • 03 janeiro 2017, terça-feira
  • Gestão

A  formação médica em Portugal na era dos Centros Clínicos Académicos

Por Maria Emília Monteiro

(Professora Catedrática da NOVA Medical School|Faculdade de Ciências Médicas)

Em 2017 celebraremos o 40º aniversário da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, que a globalização converteu recentemente em NOVA Medical School, e o 111º aniversário do edifício onde está instalada a sua sede. Sito no Campo Mártires da Pátria, o edifício é da autoria dos arquitetos José Maria Nepomuceno e Leonel Gaia e acolheu, até 1956, a primeira Faculdade de Medicina de Lisboa, que emergiu da criação da Universidade de Lisboa em 1911 e incorporação da Escola Médico-Cirúrgica já existente.

O momento convida à reflexão sobre a formação médica em Portugal, particularmente no contexto da criação, em 2016, por resolução do Conselho de Ministros de 11 de abril, do Conselho Nacional dos Centros Académicos Clínicos, que congrega, até à data, os sete centros criados entre 2009 e 2016. Estas entidades constituem-se como uma estrutura integrada de unidades de saúde, escolas médicas, centros de investigação e outros, e tem como principal objetivo “estimular e apoiar o desenvolvimento coordenado da atividade destes centros, potenciando a cooperação interinstitucional nesta matéria, criando uma reserva natural onde a investigação, o conhecimento e o entrosamento entre a parte hospitalar tradicional e o ensino se formalize e concretize”[1].

A formação médica em Portugal inclui, atualmente, um período de 6 anos da responsabilidade das faculdades de medicina para finalização do mestrado integrado em medicina, um ano de internato comum, e posteriormente um período de 4 a 6 anos de formação teórico-prática específica - o internato médico, que habilita o profissional médico ao exercício diferenciado de uma especialidade médica.  A responsabilidade da formação, quer no ano comum quer no internato médico, é do ministério da saúde.[2]

A articulação entre unidades de saúde e faculdades de medicina  para efeitos da formação médica tem sido motivo de amplo debate ao longo dos tempos.  Em 1981, Dainton referia-se à interface entre o serviço de saúde britânico e as universidades como o “local onde o presente encontra o futuro nos cuidados de saúde”.[3]  Desde o final do século XX  que a divergência  entre universidades e unidades de saúde se tem acentuado em Portugal. Os orçamentos das universidades são cada vez mais ínfimos comparados com os das unidades de saúde; a investigação clínica não acompanhou o desenvolvimento da investigação fundamental; os programas dos ministérios que tutelam a ciência e o ensino superior vs o da saúde não definiam estratégias comuns e as unidades de saúde focam-se cada vez mais em responder a problemas imediatos de forma mais célere, enquanto as universidades alargam a sua perspetiva de formação em décadas e apostam na formação ao longo da vida.

O diploma publicado em 2004 [4] para articular o ensino médico nas unidades  de saúde inclui a classificação dos hospitais em Hospital Universitário e Hospital com Ensino Universitário. Os primeiros supunham a existência de um nº significativo de médicos da carreira médica habilitados com o grau de doutor e capacidade assistencial de referência, bem como capacidade de investigação instalada, e os segundos apenas a premissa de que a maioria dos serviços participa em atividades de ensino pré-graduado. Este diploma assume ainda o conceito de centro académico numa perspetiva completamente oposta à atual, prevista na criação dos centros académicos clínicos. O centro académico na legislação portuguesa de 2004 era a unidade funcional do hospital com ensino que, por sua vez, devia estar integrado numa rede de hospitais e centros de saúde. Correspondia a uma visão micro compartimentada, centrada nos serviços das unidades de saúde, que relativizava as universidades e que tinha como objetivo “alcançar a excelência no serviço , ensino e investigação, pela introdução  de práticas baseadas na evidência e inovação no serviço, fazendo traduzir a investigação na prática e, ainda, gerir adequadamente uma base de  conhecimento em crescimento  e desenvolver novas formas de organização em trabalho”. Refletia a visão de um legislador com um profundo desconhecimento da realidade da investigação e das tendências opostas e em vigor nos países do norte da Europa e nos EUA, cuja visão do centro académico estava já em linha com a nacional de 2016: integração macro da estratégia das unidades de saúde, faculdades de medicina e centros de investigação. Tal como seria de esperar, a legislação de 2004 não alcançou os objetivos a que se tinha proposto e poucas consequências teve para além dos modelos de contratação e acumulação de salários de clínicos que lecionavam nas faculdades de medicina.

Perspetivas para a formação médica

O caráter profissionalizante do curso de medicina, com a consequente dependência das unidades de saúde  e a responsabilidade exclusiva do ministério da saúde pelo ensino pós-graduado da medicina tem determinado que, em Portugal, as faculdades de medicina tenham um papel muito secundário na formação médica, relativamente às unidades de saúde. A saída da investigação das faculdades de medicina para institutos autónomos (laboratórios associados) foi essencial para o desenvolvimento da investigação fundamental, mas contribuiu para o empobrecimento das faculdades e do caráter aplicado da investigação, além de ter criado um enorme problema de sustentabilidade no emprego dos investigadores em biomedicina. Na visão mais pessimista, as faculdades de medicina ficaram reduzidas a entidades dedicadas à negociação de locais de estágio e de convites para docentes clínicos ou investigadores a tempo parcial, atitude alimentada pelo sub-financiamento crónico das universidades em Portugal.

No entanto, um conjunto de circunstâncias nacionais e internacionais e de políticos com visão e capacidade articulação entre tutelas veio, nos últimos anos, alterar as perspetivas para a formação médica em Portugal.

 De entre as circunstâncias são variadas, destaco:

  1. A constatação, a nível europeu, de que o investimento em investigação não estava a ter o impacto desejável na inovação e promoção da saúde. Surge o programa Horizonte 2020 baseado em desafios societais e na investigação clínica;
  2. A falta de financiamento para a investigação fundamental que não apresente uma prova de conceito de tradução na saúde;
  3. A tomada de consciência pelas unidades de saúde de que a investigação clínica não só não prejudica a atividade assistencial como a melhora e pode constituir fonte de receitas e de acesso precoce a tecnologias de saúde inovadoras;
  4. O impacto dos novos prestadores de cuidados de saúde privados que, apoiados em estudos internacionais, sabem que a sua sobrevivência a longo prazo dependerá do investimento em investigação e da formação de novas gerações de médicos;
  5. O aumento dos numerus clausus no acesso a medicina que, apesar dos riscos sobejamente apregoados pelas corporações, estimula a diversidade de percursos na nova geração de médicos. A competição dos jovens médicos formados em Portugal com os portugueses formados em faculdades de medicina estrangeiras nos últimos anos;
  6. A degradação das condições de trabalho dos médicos no Serviço Nacional de Saúde e as alternativas no trabalho de investigação nas faculdades de medicina;
  7. A perspetiva de que algum dia o financiamento das unidades de saúde pode incluir indicadores de investigação;

Em 2015, para além da publicação de alterações ao internato médico[5], foram publicados alguns diplomas que indiciam uma mudança de paradigma na articulação entre Ministérios da Saúde e da Investigação e/ou Ensino Superior, por exemplo:

  1. Programa Integrado de Promoção da Excelência em Investigação Médica, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 18/2015, de 7 de abril, que integra as vertentes Pessoas,  Ideias e Recursos;

  1. A criação de Serviços de Investigação, Epidemiologia Clínica e de Saúde Pública nos Hospitais, Centros Hospitalares ou Unidades Locais de Saúde, dispondo de autonomia técnica e científica, despacho (extrato) n.º 7216/2015 de 1 de julho;

  1. Investigador Médico (Decreto-Lei de 24 setembro de 2015) que define as condições especiais aplicáveis aos médicos integrados nas carreiras médicas dos estabelecimentos e serviços do Serviço Nacional de Saúde que sejam selecionados para o Programa Integrado de Promoção da Excelência em Investigação Médica;

Em 2016, em linha com o mesmo espírito, publica-se o já referido diploma, que cria o Conselho dos Centros clínicos académicos e, simultaneamente, uma outra Resolução do Conselho de Ministros (n.º 20/2016) que cria um grupo de trabalho cuja missão principal é a apresentação de uma proposta de medidas de promoção de investigação clínica e de translação e da inovação biomédica em Portugal, incluindo os termos de referência para a criação de uma Agência de Investigação Clínica e Inovação Biomédica.

O denominador comum às novas circunstâncias e às novas medidas é, sem dúvida, a investigação médica. As unidades de saúde continuam a ser preponderantes na formação médica mas o paradigma muda claramente e o papel das faculdades de medicina sai reforçado. As unidades de saúde colocam a investigação na agenda das suas atividades e da formação pós-graduada. Apercebem-se que não detêm as competências necessárias nem em investigação nem em gestão da investigação e recorrem à colaboração com as universidades e com o setor empresarial na organização da investigação. Apercebem-se ainda que a investigação é multidisciplinar, realizada em equipas e que requer infraestruturas complexas. Os investigadores biomédicos ganham liderança nas novas oportunidades de colaboração com os profissionais de saúde e as faculdades de medicina procuram formar, em investigação, um leque cada vez mais alargado de profissionais de saúde. As unidades de saúde privadas competem pela idoneidade e protagonismo na formação médica pré e pós-graduada, criam incentivos aos doutoramentos e os alunos de medicina deixam de ser um peso para a atividade assistencial para se converterem num mercado apetecível de futuros recursos humanos de elevada qualidade.

O ambiente é claramente de otimismo mas os entusiasmos serão necessariamente refreados pelo tempo. De facto, há ainda muitas agendas pessoais que atrasam projetos institucionais; há centros académicos clínicos desde 2009 mas a maioria ainda não saiu do papel; não se vislumbram alterações substanciais nos modelos de financiamento nem das universidades nem dos centros clínicos académicos; o programa de Promoção da Excelência em Investigação Médica e o regulamento do Investigador Médico não se implementaram; a reavaliação das “medidas de promoção da investigação clínica e de translação e da inovação biomédica” pode vir a constituir um retrocesso;  já há medidas concretas de desinvestimento na internacionalização da investigação fruto das limitações orçamentais; a Agência de Investigação Clínica e Inovação Biomédica é ainda apenas uma promessa;  o papel das escolas médicas na formação pós-graduada em Portugal está ainda muito distante das melhores praticas internacionais, etc.

Enfim, o sentido da mudança é claro e irreversível, resta saber a que ritmo iremos evoluir.

Nota: Comecei esta reflexão sob o pretexto do 40º aniversário da NOVA Medical School e do 111º aniversário do edifício que une as duas escolas médicas de Lisboa. Até entre estas o paradigma mudou e pela primeira vez na história houve mais  candidatos a medicina a preferirem,  em Lisboa,  a Faculdade de Medicina da Universidade NOVA.

[1] Resolução do Conselho de Ministros n.º 22/2016, Diário da República, 1.ª série — N.º 70 — 11 de abril de 2016

[2] Decreto-Lei nº 86/2015, de 21 de maio e Portaria nº 224-B/2015 de 29 de julho

[3] Dainton, 1981, Reflections on the Universities and the NHS. London: Nuffield Provincial Hospital Trust. Cited by “The Academic Health Center: Leadership and Performance. Don Detmer and Elaine Steen eds.,  2005. Cambridge University Press, 2005

[4] Decreto –Lei nº 206/2004 de  19 de agosto

[5] Decreto-Lei nº 86/2015, de 21 de maio, e portaria nº 224-B/2015, de 29 de julho.

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