Um olhar sobre a evolução da gestão hospitalar em Portugal

Perspetivas de evolução e contributos de um académico e profissional

                                                   

Em princípios/meados do século XX, com a publicação de múltiplos diplomas legais, ocorreram em Portugal importantes reformas que, com caráter verdadeiramente inovador, criando, reorganizando, reestruturando e regulamentando Instituições e Serviços, deram início a uma real transformação do estado sanitário do nosso País. 

No quadro mais geral dessas reformas, a Organização Hospitalar, na sua perspetiva macro, não foi esquecida, como não foram esquecidas também as matérias ligadas à organização e funcionamento dos hospitais, designadamente as relativas à sua administração.

Mas, já antes, o facto de, a partir dos fins do século XVIII, princípios do século XIX, as Misericórdias começarem a preocupar-se fundamentalmente com a assistência hospitalar conduziu, como anteriormente afirmámos, a um progressivo aperfeiçoamento da sua administração. Com efeito, tal obrigou a maior complexidade que essa atividade introduziu no seu funcionamento.

Por outro lado, os três “novos” grandes hospitais que a partir do século XVIII enriqueceram o parque hospitalar português não deixaram, de igual modo, de contribuir para que, quer por razões quantitativas – a sua dimensão -, quer, sobretudo, por razões qualitativas resultantes da evolução verificada no domínio da saúde em geral e do desenvolvimento da ciência médica em matéria de maior diferenciação dos cuidados hospitalares, ocorresse um evoluir na prática da sua administração, com a utilização de novas “ ferramentas “ que, à sua volta, outras Organizações iam acolhendo.

Aliás, como no mundo empresarial, as Instituições do mundo social, e em particular os hospitais, não puderam ficar indiferentes às profundas alterações que a Revolução Industrial Inglesa introduziu em matéria de desenvolvimento tecnológico, económico e social.

Acresce ao que acabamos de dizer que, em outros contextos que não o português, a formação em administração hospitalar vinha já percorrendo algum caminho, designadamente nos Estados Unidos da América, havendo conhecimento de um curso criado em 1934 na Universidade de Chicago ou, como, em 1958, referia Coriolano Ferreira, eram igualmente conhecidos “vinte e três cursos, quase todos em Universidades, a maior parte dos quais nos Estados Unidos da América” (ver Reis, Vasco, Gestão em Saúde, um espaço de diferença, Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa, 2007, pag.6).

Aproveitamos a oportunidade de citar Coriolano Ferreira para afirmar, sem qualquer espécie de dúvida, que aquela referência está no centro de uma atividade ímpar em Portugal em matéria de “nascimento” e desenvolvimento da administração hospitalar.

Já antes, na 3.ª Parte deste conjunto de artigos, referenciámos Coriolano Ferreira como “Meu Mestre e referência inigualável na gestão hospitalar em Portugal”.

Voltaremos, adiante, neste e em outros artigos desta série, a relembrar o que foi a sua ação neste domínio.

A nosso ver, este conjunto de razões determinou que, a partir de meados do século XIX mas, sobretudo, após o início do século XX, a gestão hospitalar tenha entrado em Portugal numa nova Fase. Se não gestão hospitalar, pelo menos administração hospitalar!

2ª Fase – Fase de transição

A razão que nos levou a assim designar esta Fase residiu no facto de considerarmos que ela representa a passagem de testemunho de um tempo que, embora diferenciado, como vimos, por dois espaços temporais, constituiu a ponte entre uma prática de contornos mais ou menos voluntaristas para uma progressiva demonstração de vontade no sentido de, no quadro geral da evolução sanitária do país, lançar as bases de novas formas de organização e funcionamento dos hospitais.

De entre as razões, antes sumariamente inventariadas, que estiveram na origem do início desta Fase, e sem que as demais sejam de menosprezar, as reformas então ocorridas em Portugal, embora diferentes no seu âmbito, conteúdo e alcance, vieram a ter particular influência no funcionamento da atividade hospitalar em razão das inovações introduzidas.

A Reforma Ricardo Jorge, como assim ficou conhecida, de 1899, regulamentada em 1901 e com funcionamento iniciado em1903, procurou “ estruturar e fazer funcionar um mecanismo sanitário de defesa da saúde da população “, contendo as “ bases do que se pode chamar o moderno sanitarismo considerado necessário ao País” (Ferreira, F.A. Gonçalves Ferreira, História da Saúde e dos Serviços de Saúde em Portugal, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, pág. 337).

Esta reforma, se bem que mais centrada no domínio da saúde pública, não deixou de vir a ter consequências na reorganização hospitalar posteriormente iniciada.

Mas é sobretudo a partir dos anos 40 do século XX que surge todo um conjunto legislativo verdadeiramente inovador para a organização e atividades hospitalares.

Em Abril de 1946 é publicada a Lei n.º 2011, diploma verdadeiramente inovador, do maior interesse para a organização hospitalar e que, passe a expressão, constituiu o abrir de portas para as novidades legislativas que se lhe seguiram e que percorreram os anos sessenta e setenta, bem como para outras iniciativas que se ficaram a dever à ação de homens mas, sobretudo, de um homem. Adiante explicitaremos esta afirmação.

Por força desta Lei, os responsáveis políticos ficaram obrigados a dar cumprimento ao disposto na sua Base XXIII, que consignou o seguinte:

"A organização, administração e funcionamento dos hospitais civis, a preparação técnica, modo de recrutamento e acesso dentro dos respetivos quadros, bem como os direitos e obrigações do pessoal, serão regulados por diploma especial ".

É desta Lei também a orientação genérica de que “Os hospitais situados na mesma localidade e dependentes da mesma administração podem agrupar-se por forma a constituírem os diferentes serviços de uma unidade hospitalar “conforme preceitua o n.º 3 da sua Base VI, o que claramente revela preocupações de racionalidade e eficiência próprias de uma nova perspetiva de utilização de recursos e forma de o conseguir e que, no futuro, ainda que de forma intermitente, não deixou de vir a ser posto em prática.

Para além da Lei n.º 2011, quer nos anos 40 quer nos anos 50, são múltiplos os diplomas legais que, alguns na sequência ou em consequência daquela Lei, outros não, reconhecem que os Hospitais, bem como outras Instituições e Serviços de Saúde, por razões ligadas à sua missão, natureza e complexidade, exigem especiais cuidados na utilização dos recursos que crescente e diversificadamente lhe são alocados e, em consequência disso, procedem à definição de quem deve ser investido na responsabilidade por essa utilização e na formação que,  para tal,  deve ser adquirida.

Pelo seu alcance e significado, não daremos conta de todos esses diplomas. Limitar-nos-emos a referenciar, ainda que com o risco de deixarmos no esquecimento, alguns que não o deveriam ser, os que consideramos mais significativos para o tema.

Em 7 de novembro de 1945 é publicado o decreto-lei nº 35.108, que atribui autonomia técnica e administrativa aos Hospitais Civis de Lisboa e aos Hospitais da Universidade de Coimbra, atribuição esta que, como é evidente, obrigou a introduzir na administração destes Hospitais algumas “novidades” exigidas por essa atribuição. É que a concessão de autonomia, ao atribuir maior liberdade de atuação, não deixa de acarretar mais e maiores responsabilidade que, naturalmente, fazem apelo ao recurso a soluções mais imaginativas e diferenciadas traduzidas em formas de atuação e utilização de procedimentos que passam a pertencer, em maior ou menor dimensão, a quem por elas é responsável.                                         

Foram em maior número os diplomas que consignaram a criação do cargo de administrador, bem como a intenção de se  criar o curso de administração hospitalar.

No tocante à criação do cargo de administrador, foram publicados os seguintes diplomas:

- Decreto-Lei n. 36.451, de 2 de agosto de 1967, que estabelece que “o Hospital Colónia Rovisco Pais é dirigido por um director e por um administrador”;

 - A Portaria n.º 13.051, de 21 de janeiro de 1950, aprova o quadro de direção e chefia   dos Hospitais da Universidade de Coimbra e nele consta, pela primeira vez nos hospitais gerais, um lugar de administrador;

- O Decreto-Lei n.º 41.759, de 25 de junho, ao criar o Instituto de Assistência Psiquiátrica, determina no seu artigo 23 que, “nos hospitais e asilos psiquiátricos a administração está a cargo de um administrador, competindo a direcção técnica ao director dos serviços clínicos”.

Relativamente à criação do curso de administração hospitalar, é em 10 de abril de 1947 que surge essa intenção, através do Decreto-lei n.º 36.219 que, numa primeira previsão de um curso desta natureza e a propósito da reorganização do ensino da enfermagem, consignava que “As escolas podem ministrar simplesmente o ensino de enfermagem em um ou mais cursos ou, cumulativamente, o de administração hospitalar e de serviço social, destinando-se este último exclusivamente ao sexo feminino “ ;

Partilhamos a opinião de que o diploma de 10 de abril de 1947 constituiu tão-somente uma intenção e um primeiro assomo de politicamente se reconhecer a necessidade da criação de um curso de administração hospitalar. A comprová-lo está o facto de que, só 5 anos depois, o Decreto-Lei n.º 38.884, de 28 de agosto de 1952, retoma a ideia, estabelecendo no seu artigo 17.º que “ Os cursos de administração hospitalar previstos no Decreto-Lei 36.219 destinam-se à preparação e aperfeiçoamento do pessoal administrativo dos estabelecimentos de assistência”, acrescentando que “Poderão estes cursos funcionar junto das escolas de enfermagem, centros, institutos ou hospitais que reúnam as condições necessárias para o seu ensino” (ver Vasco Reis, obra citada, pág. 19).

Foi necessário aguardar 18 anos, como veremos em próximo artigo, para criar tão prometido curso! Mas, verdade se diga, a insistência do passado acabou, embora tarde, por dar os seus frutos. Mas mais valeu tarde do que nunca!

Intervalamos este inventariar de diplomas legais com a já prometida referência, ainda que muito mais breve do que é merecedora, ao que foi a ação de Coriolano Ferreira  quer no exercício quer na profissionalização da administração hospitalar.

Essa ação, para além da que referenciaremos no artigo seguinte, traduziu-se, nesta Fase, no desempenho pioneiro, nos anos 40 e 50, do cargo de administrador dos Hospitais da Universidade de Coimbra – seguido por igual desempenho no “novo” Hospital de Santa Maria em Lisboa – e numa outra particularmente relevante: a criação, em 1948, da revista “Hospitais Portugueses”, iniciativa, para o tempo, unanimemente reconhecida não só como pioneira como até audaz.

Como registaremos na Fase seguinte, a construção e a entrada em funcionamento de um elevado número de novos hospitais que, então, teve lugar, constituiu, a vários títulos, uma forte alavanca no desenvolvimento da gestão hospitalar.

Nesta Fase, pese embora o facto de «apenas terem sido construídos 4 novos hospitais (públicos) – S. João, no Porto, Santa Maria, em Lisboa, Maternidade Dr. Alfredo da Costa e Ala A do IPO (então designado Instituto Português Para o Estudo do Cancro), em Lisboa -, o contributo dos dois primeiros foi decisivo para o desenvolvimento da gestão hospitalar em Portugal em dois planos diferentes mas convergentes no mesmo sentido.

Desde logo, pela sua dimensão e complexidade – estamos perante dois hospitais universitários –, foi naturalmente reconhecida a necessidade de atribuir, quer à sua administração quer à sua direção técnica, uma preocupação de elevado grau, sendo certo que estávamos perante duas grandes “empresas”.

Este reconhecimento traduziu-se, de imediato, na publicação de dois diplomas legais. Vasco Reis, na sua obra atrás citada, pág. 12, dá conta das disposições contidas nesses diplomas relativas a esta matéria. 

Reproduzimos aqui e agora essas disposições legais

Para o Hospital de Santa Maria, foi publicado o Decreto-Lei n.º 40.398, de 24 de novembro de 1955, que, regulamentando a sua organização, estabeleceu o seguinte em matéria de quadro de pessoal:

“Art.º 6.º: A administração do Hospital de Santa Maria incumbe a um administrador, coadjuvado por um adjunto, que o substitui nas suas faltas e impedimentos.

Art.º 7.º: A direção técnica fica a cargo do director dos serviços clínicos, coadjuvado por directores e chefes de serviço.

Art.º 8.º: Presidido pelo administrador, funciona o conselho administrativo…”.

Saliente-se que o administrador era a “primeira figura” do Hospital.

Para o Hospital de S. João, o Decreto-Lei n.º 41.811, de 9 de agosto de 1958, criou no seu quadro de pessoal um lugar de administrador a quem, nos termos do seu art.º 7.º, competia a administração do hospital, respondendo diretamente perante o Ministro do Interior.

Em 16 de dezembro de 1961, o diploma antes citado foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 44.096, que substituiu a designação de administrador pela de provedor – certamente que houve razão para isso mas, por culpa nossa, não a encontrámos! -, responsável pela administração do hospital, “ escolhido”, nos termos deste diploma, “entre os professores da Faculdade de Medicina ou outros diplomados por cursos superiores. Nesta última hipótese terão preferência os diplomados com o curso de administração hospitalar. Em ambos os casos, porém, o cargo de provedor não é acumulável com o exercício de qualquer outro no Hospital ou na Faculdade ou com o exercício de profissão liberal”.

Registe-se, por último, um facto ocorrido em 1958 com a criação, pelo Decreto-Lei n.º 40.825, de 13 de agosto, do Ministério da Saúde e Assistência – a designação atual de Ministério da Saúde só viria a ter lugar em 1973 – “para o qual são transferidos os Serviços de Saúde Pública e os Serviços de Assistência Pública até ao presente dependentes do Ministério do Interior, e extinto o cargo de Subsecretário de Estado da Assistência Social”.

Este facto haveria de ter, como veremos na Fase seguinte, uma significativa influência no desenvolvimento da gestão hospitalar em Portugal.

Com esta “história” evolutiva estavam criadas as condições - se é que elas já não existiam (?) – para, dentro em breve, poder falar-se em gestão hospitalar.

José Nogueira da Rocha

Provedor do Associado e Cliente do SUCH

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