Entrevista a José Cunha-Vaz, Presidente da Associação para a Investigação Biomédica e Inovação em Luz e Imagem

José Cunha-Vaz fala da génese da AIBILI e do seu papel não só enquanto Centro de Investigação mas também enquanto apoio ao serviço de Oftalmologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Com esta entrevista, os leitores ficam a conhecer as opções de vida que levaram este oftalmologista a enveredar pela investigação científica, bem como a sua visão acerca desta área e da evolução que tem experimentado. José Cunha-Vaz deixa também a sua visão crítica sobre a falta de sinergias a que tem assistido em Portugal.

Como nasceu a AIBILI?

 A Fundação para a Ciência e Tecnologia criou, na década de 1980, programas para a Economia (PEDIP), para o Ensino (PRODEP) e para a Investigação Científica (Ciência). Houve um concurso nacional e eu apresentei uma proposta fazendo uso dos meios existentes em Coimbra.  

Procurei criar uma unidade de translação [passagem do conhecimento laboratorial para a investigação clínica]. A minha proposta contemplava uma candidatura ao PEDIP para aplicação enquanto indústria e uma candidatura ao Ciência, onde incluí o edifício onde funcionaria a investigação laboratorial. A candidatura que fiz ao Ciência materializar-se-ia no IBILI [Instituto Biomédico de Investigação em Luz e Imagem], enquanto a candidatura ao PEDIP se concretizaria na AIBILI, sendo a AIBILI a instituição privada sem fins lucrativos que dirigia os dois institutos. Atualmente, os dois organismos estão separados, sendo a AIBILI a única infraestrutura tecnológica sob a égide do Ministério da Economia.

Também foi apresentada uma candidatura no âmbito do PRODEP, mas não chegou a avançar porque os fundos europeus destinados à Universidade de Coimbra foram consagrados à Faculdade de Engenharia e Ciências.

Atualmente a AIBILI tem funcionários da Universidade?

Não. A AIBILI é uma instituição privada sem fins lucrativos, separada e independente da Universidade, para além da ligação de cariz moral, já que a universidade é nossa sócia honorária.

O que faz neste momento o IBILI?

O IBILI continua a fazer investigação básica, laboratorial acima de tudo. Tem uma unidade de investigação de Oftalmologia, outras de Biofísica, Bioquímica e Farmacologia e tem essencialmente laboratórios, mantendo também uma ligação ao ICNAS – Instituto de Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde e, recentemente, ao Centro de Neurociências de Coimbra (CNC).

Qual a sua ligação à componente técnica hospitalar?

Durante a minha carreira, estive sempre ligado a hospitais e serviços de saúde, mantendo grande interesse, consideração e respeito pelas tecnologias, que fazem progredir os cuidados de saúde. Cada vez mais, a componente tecnológica é crucial. Os cuidados de saúde, a nível hospitalar, são tão complexos e elaborados que a tecnologia hospitalar é fundamental. Tive oportunidade de discutir algumas destas matérias com os antigos engenheiros do Hospital de Coimbra. A minha dúvida, a certa altura, era se a componente técnica hospitalar deveria estar sob a alçada da direção ou deveria ser completamente independente, pensando-se essencialmente na componente económica. Nos hospitais nórdicos cabe aos técnicos a decisão completa sobre os equipamentos, e nos EUA há um pouco das duas coisas, havendo alguma participação dos diretores de serviço dos hospitais. Eu defendo que haja porque quem é responsável pelos cuidados de saúde tem de ter confiança nos equipamentos ao seu dispor, portanto tem uma palavra importante a dizer. Como médico sempre achei que era a eficiência de serviços que estava em primeiro lugar, pelo que tem de haver uma colaboração muito forte entre engenheiros, técnicos e os médicos na aquisição de equipamentos - o envolvimento das duas partes é necessário.

No entanto, senti, durante os últimos anos de direção, que havia uma erosão dessa capacidade de decisão. Havia uma tendência muito vincada da administração hospitalar para rentabilizar meios e recorrer a centrais de compras, mais do que propriamente ouvir os médicos e a experiência dos especialistas, o que considero prejudicial. No entanto, trata-se de opções políticas e gerais do Ministério.

Um serviço de Oftalmologia como da Universidade de Coimbra teria capacidade para englobar técnicos de engenharia ou deveria partilhar esses recursos com outras especialidades?

Eu lutei sempre para ter um elemento técnico (não um engenheiro mas uma pessoa com conhecimentos técnicos). Acho que é fundamental. Mas esse elemento pode estar disponível e continuar a ser gerido pelos engenheiros do hospital com um elemento destacado. É necessário porque existe muito equipamento, cada vez mais complexo e com mais sofisticação, num cenário em que o papel de outros profissionais acaba por perder relevância. Por exemplo, em Inglaterra, as injeções usadas no tratamento das doenças da retina são atualmente administradas por enfermeiros. Aqui, a tendência será essa mais cedo ou mais tarde. A minha especialidade será cada vez mais feita  em regime semelhante à telemedicina e com menos contacto com o doente, com todas as consequências que daí advêm.

Quantos técnicos e investigadores estão alocados aos projetos da AIBILI?

Para projetos de apoio logístico à investigação clínica temos várias áreas. Uma delas é a área da coordenação de ensaios clínicos, que engloba essencialmente projetos internacionais e inclui cerca de 10 pessoas. Há também uma área de investigação e imagem e um centro de leitura de imagens de oftalmologia, que responde à necessidade de, nos ensaios clínicos, uniformizar os resultados recorrendo a classificadores de imagens centralizados. Essas imagens são vistas da mesma maneira por todos para que os resultados tenham garantia de qualidade. Temos também contratos com a indústria para estudos internacionais. Temos um centro de ensaios clínicos com um protocolo com o Hospital da Universidade de Coimbra. Essa não é a atividade principal da AIBILI mas todos os doentes que aqui vêm são doentes registados no hospital, portanto têm as mesmas condições de assistência que os restantes, com a diferença de serem casos de investigação clínica. Também temos projetos em colaboração com a ARS, temos uma base de dados certificada internacionalmente e temos uma unidade que analisa a evolução do custo-benefício da utilização de medicamentos. Há cinco ou dez anos apostava-se num medicamento fazendo uma análise económica baseada na sua eficácia como medicamento ativo. A empresa só iria investir se valesse a pena do ponto de vista de efeitos de saúde. Se esse medicamento pudesse preencher uma lacuna nas possibilidades de medicação existentes, apostava-se e procurava-se ter retorno. Atualmente, logo no estudo, na fase de definição do medicamento e na avaliação do investimento já são feitas análises custo-benefício. A grande questão, logo à partida, é saber se o medicamento vai trazer retorno financeiro e se vai comportar capacidade de ter reembolso da parte dos governos.

Quais são as fontes de financiamento da AIBILI?

A nossa principal fonte de financiamento é a União Europeia através de projetos europeus, projetos em concursos nacionais e projetos da indústria. Participamos em projetos da indústria como centro de ensaio clínico ou integrados na rede europeia. Nesta modalidade, a rede propõe um estudo e comunica esse intuito e essa orientação às empresas associadas da nossa área, apresentando logo os custos envolvidos. As empresas dizem se estão interessadas e, em caso afirmativo, dão um apoio financeiro, uma espécie de bolsa.  

Há pouco referiu o protocolo com o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, no âmbito do qual a AIBILI recebe doentes para investigação. Existe mais algum aspeto em que esse protocolo se materialize?

O facto de termos aqui uma unidade de investigação permite que todos os doentes em situações relacionadas com a investigação possam ser vistos aqui, funcionando a AIBILI como extensão do hospital. Nós temos equipamentos de que o hospital usufrui mas são pertença da AIBILI. Nós dispomos do melhor e mais moderno equipamento do mundo o qual também serve os doentes do hospital As pessoas vêm aqui referenciadas pelo hospital. Todos os doentes que precisem de cuidados mais sofisticados, principalmente em termos de retina, vêm à AIBILI.

O Professor, ao longo da sua vida, tem recebido vários prémios com significado, nomeadamente o Prémio Nacional de Saúde, atribuído pela Direção-Geral de Saúde em 2014, mas também alguns de âmbito internacional…

O mais significativo é o prémio Weisenfeld, dos EUA, porque é uma espécie de Pritzker aplicado à Oftalmologia. É o principal prémio de investigação clínica do mundo, e é habitual uma grande predominância da Oftalmologia americana. Só dois europeus venceram o prémio até agora, tendo os restantes sido atribuídos nos EUA. Recebi outra distinção importante que foi a Medalha de Ouro Helmholtz, da Sociedade Europeia de Oftalmologia. São os dois prémios mais importantes de âmbito internacional. É de salientar que são os mais representativos ao nível internacional, nos EUA e na Europa, respetivamente.

O Prof. iniciou a fluorometria clínica de vítreo. Em que consiste esta técnica?

Os olhos, por serem uma extensão do cérebro, têm de estar num ambiente celular muito protegido, pois não se renovam com facilidade e não se recuperam quando lesados, o que traz consequências graves. O sistema nervoso central, o cérebro e a retina têm de estar muito protegidos. Ao contrário do resto do organismo, a retina tem uma barreira, uma estrutura que protege e se filtra e mantém a homeostase do tecido à volta das células nervosas. O meu grupo de investigação provou a existência dessa barreira hemato-retiniana, e a fluorometria do vítreo foi o primeiro método que surgiu para quantificar as alterações da barreira hemato-retiniana – implicava a injeção de fluorescina e a sua medição no interior do olho. Este avanço, iniciado em Portugal, teve muito impacto tendo mesmo levado à criação da Sociedade Internacional de Fluorometria Ocular.

Para além daquilo que já referiu, quais são as suas áreas de investigação primordiais?

A minha investigação tem sido feita sempre à volta da retina, sobretudo no campo da retinopatia diabética, a área a que me tenho dedicado desde o doutoramento. Primeiro dediquei-me à descrição, classificação, categorização e identificação da barreira hemato-retiniana. A Barreira Hemato-Retiniana tem um impacto muito grande, dado que os tratamentos atuais são todos baseados em medicamentos que atuam sobre a barreira hemato-retiniana. Depois, a fluorometria clínica de vítreo teve um grande impacto por ter aplicação clínica.

Quando estava no liceu, pôs a hipótese de ir para Engenharia Química. O que o levou a optar por outra área?

Nessa altura eu gostava muito de matemática. Era uma tendência natural e além disso tive bons professores. No entanto, no 7º ano, não pude fazer o exame devido a um impedimento de saúde. Acabei por ser incentivado pelo pai de um colega a optar por Medicina, uma alternativa que me dispensava de repetir o exame, e acabei por seguir a sugestão.

Se Tivesse de aconselhar alguém a enveredar pela Investigação, que qualidades deveriam presidir a esse conselho?

A pessoa tem de ter uma mente inquisidora e vontade de saber mais. O momento mais entusiasmante da vida é percebermos que vimos alguma coisa que ainda não tinha sido vista. A partir daí o interesse é despertado. Até lá é uma questão de se ir procurando saber mais. Trata-se de algo relacionado com a ambição. As pessoas devem apontar para cima, querer ser melhores. Por exemplo, se alguém estiver a trabalhar numa determinada área cujo cerne seja nos EUA, é para lá que deve ir, ainda que lhe fosse mais confortável ir para outro sítio. As pessoas têm de ter essa ambição e esse desejo de ser melhores.

Portanto, acha que o português está ao nível de qualquer outro?


Do ponto de vista pessoal e de inteligência, sem qualquer dúvida. Constato que as melhores ideias e a maior capacidade inovadora vem muitas vezes dos italianos, devido à sua capacidade de encarar situações novas. Ora, eu acho o português parecido com o italiano nessa capacidade inerente, na capacidade de procurar novas soluções. No entanto, falta-nos organização e somos péssimos em termos de responsabilidade. Facilitamos demasiado.

As pessoas ligadas à investigação queixavam-se muito, durante um período, de falta de apoios. Qual é o estado atual da área?

Eu acho que as condições melhoraram muito em Portugal, quando comparamos com a realidade de há 20 ou 30 anos. Considero, no entanto, ter havido um exagero na parte do apoio à investigação laboratorial, embora seja por aí que se tenha de começar. Eu pertenci ao Conselho Nacional da Fundação para a Ciência e Tecnologia e, nessa altura, com a equipa desejada por Maria de Sousa, procurei melhorar as condições da investigação em Portugal. As principais condições que achámos necessário implantar em Portugal eram as consideradas normais noutros países: existência de concursos regulares que permitissem planear a investigação, e em que houvesse competição e avaliação internacional. Durante anos isso melhorou muito e houve muita a coisa a ser feita para a parte laboratorial. No entanto, esse apoio à parte laboratorial deveria ter sido seguido de um apoio, nos anos seguintes, à parte clínica, que permitisse a utilização real dos avanços feitos a nível molecular. Não tem havido isso, além de se ter perdido a imparcialidade e se ter instalado um certo compadrio por grupos e por influências políticas. Acho que não recuperámos o avanço que se fez e estamos outra vez a descambar, como aliás acontece nas nossas atividades. Geralmente, melhoramos num período e depois entramos no hábito da nossa desorganização habitual.

Não consigo entender como sendo a AIBILI reconhecida como um centro de excelência e único na Europano apoio logístico à investigação clínica não é a primeira e natural escolhapara as unidades de investigação clínica em Coimbra. Deseja-se criar um novo centro, o que é típico do país. Nós somos procurados pela Alemanha mas dentro do país não nos procuram como uma solução óbvia, nem sequer em Coimbra. É com alguma pena que constato que as pessoas não sabem trabalhar em equipa. Coimbra tem condições para fazer uma sinergia muito forte e excelente com as instituições de que dispõe, pela proximidade, mas a maioria das pessoas continua a ter dificuldade em colaborar. Não existe, em Portugal, um culto de excelência, antes pelo contrário. A excelência não é apreciada, apenas a mediocridade talvez porque assim se notam menos as falhas próprias.

O que acha que podia ser feito para alterar esse estado de coisas?

Não vejo que isso tenha cura. Estamos demasiado virados para as nossas limitações. Acho que as pessoas deviam ser forçadas a assumir responsabilidades porque só assim é que funcionam.

Uma auditoria internacional…

E feita por gente competente! A questão é que a auditoria atualmente é feita por gente incompetente, por uma razão muito simples. Os avaliadores, quando são bons, não aceitam vir avaliar. O grande problema, mesmo nos projetos na União Europeia, é que os melhores não querem ser avaliadores porque não têm tempo para passar uma semana a fazer a avaliação, além de não serem pagos de acordo com o tempo gasto. A maior parte dos avaliadores é medíocre e portanto a avaliação é mal feita. A avaliação é o calcanhar de Aquiles dos projetos europeus, pois só pode ser feita por pessoas disponíveis para estarem ali uma semana inteira dedicadas a uma atividade intensa e cansativa. A avaliação é um grande problema, e nós acabamos por sofrer as consequências disso.

José Cunha-Vaz licenciou-se em Medicina em 1961. Esteve em Inglaterra, onde se doutorou, entre 1963 e 1966, tendo-se também doutorado na Universidade de Coimbra em 1967. Regressado a Portugal, foi para o Laboratório Nacional de Energia Nuclear. Foi investigador na Junta de Energia Nuclear e no Laboratório de Física e Energia Nuclear. Regressaria à Universidade e ao Hospital Universitário de Coimbra como diretor do serviço de Oftalmologia em 1972, que haveria de construir de base. A sua carreira de investigação passaria também pelos Estados Unidos, onde foi Professor de Oftalmologia e Diretor do Serviço de Retina e do Illinois Eye Research Institute de Chicago. Finalmente, em 1986 regressou ao seu Serviço de Oftalmologia do Hospital da Universidade de Coimbra.  É agora presidente da AIBILI - Associação para Investigação Biomédica e Inovação em Luz e Imagem.

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