Vasco Gama Ribeiro

O Diretor do serviço de Cardiologia do CHVNG/E fala-nos da evolução tecnológica verificada naquele serviço, mas constata também a necessidade de disponibilizar mais camas para responder às necessidades. Vasco Gama Ribeiro aborda a vertente de formação do serviço de Cardiologia e a sua experiência pessoal na Mongólia, onde contribuiu para o funcionamento de um serviço de Telemedicina.

O ano passado comemoraram-se os 25 anos da unidade de cuidados intensivos coronários. Qual o balanço deste período?

Há cerca de 30 anos não havia Serviço de Cardiologia. Ao invés, havia dois ou três gabinetes, três médicos, duas enfermeiras e apenas um eletrocardiógrafo. Com a ajuda do Dr. Jaime Neto, na altura presidente do Conselho de Administração, fomos paulatinamente equipando o Serviço: primeiro a consulta externa, com ecógrafos e provas de esforço; depois, abriu-se uma unidade coronária, e, por fim o laboratório de hemodinâmica, que, no próximo ano também celebra 25 anos.

Como é constituído o CHVNG/E?

VGR: Existe este hospital [Hospital Eduardo Santos Silva], que era o antigo Sanatório D. Manuel II, e também uma unidade no centro da Cidade de Gaia, designada por Hospital Distrital de V. N. Gaia, onde primitivamente estavam os serviços de urgência, que agora passaram para a unidade 1. Na unidade 2, no centro da Cidade, estão agora instalados os serviços de Pediatria, Ginecologia e Obstetrícia e Ortopedia. Chegou a existir uma terceira unidade, que era o Hospital de Francelos, entretanto desativado e que hoje é o Centro de Reabilitação do Norte. Por reajustamento da ARS, o Hospital de Espinho passou a estar integrado no Centro Hospitalar, sendo lá feita Cirurgia de Ambulatório e onde existe uma consulta avançada de Cardiologia para os doentes da área.

Quantas camas tem o Centro Hospitalar?

O Centro Hospitalar tem cerca de 700 camas. Um dos problemas da Cardiologia é precisamente o número de camas. Este é um hospital de fim de linha, com um serviço de Cardiologia altamente diferenciado em termos de tecnologia. Podemos tratar todo o tipo de patologia até ao transplante cardíaco, algo que nunca será feito aqui com o meu aval porque acho que um centro de transplante cardíaco para o País inteiro é, do ponto de vista do planeamento, suficiente. Essa situação foi consubstanciada o ano passado pelo Ministério da Saúde, nomeando, como Centro de Referência Nacional, o serviço chefiado pelo Prof. Manuel Antunes, em Coimbra, como o único centro de transplante cardíaco no país. Num país com 10 milhões de habitantes, é expectável que se tratem 80 a 100 doentes por ano necessitando de transplante, número nunca alcançado.

Já há uns anos, em entrevista, tinha feito referência a esse problema de falta de camas, mas também referiu uma suposta ampliação do serviço. Não se concretizou?

Na verdade, nunca se concretizou. O Serviço de Cardiologia tem oito camas na unidade de Coronária, 12 camas na unidade intermédia (quando deveria ter 24), e tem 8 camas de recobro, que estão sempre lotadas. O Serviço tem uma necessidade premente, e isto tem sido reafirmado a todas as administrações do Centro Hospitalar. Está equipado, apesar de fazer falta alguma renovação de equipamentos, mas a principal necessidade são as camas.

Um aspeto que gostaria de realçar é que actualmente fazemos quase 90 por cento dos cateterismos de diagnóstico, e mesmo de intervenção, pela artéria radial. Isso permite que ao fim de 3 horas os doentes tenham alta, não ocupando, por isso, cama. Por determinação do Ministério, o hospital recebe mais dinheiro se o doente estiver internado 24 horas mais 1 minuto, mas não há necessidade de internamento. Ao fim de três horas o doente pode ir para casa. Segundo dados da administração, este hospital não recebe cerca de 700 mil euros por doente por causa desta situação. São as idiossincrasias deste sistema de saúde português, que às vezes é muito difícil de entender.

Há uma frase de um autor francês, que diz “Les robots ne joueront pas ‘La Traviata’”, ou seja, estamos numa dicotomia: a permanente renovação tecnológica pressupõe alguma subjugação à tecnologia? A relação médico-doente sai frustrada?

Cada vez mais a relação médico-doente é a peça fulcral da medicina. Se o cardiologista não falar com o doente, não faz um bom diagnóstico, e muitas vezes vemos aqui doentes com um enfarte que poderia ter sido evitado se o médico que o viu um dia, uma semana ou um mês antes tivesse ouvido as suas queixas. Cada vez mais, para auxílio do doente e para o êxito dos diagnósticos e terapêuticas, a tecnologia está no terreno. Sem alta tecnologia não éramos capazes de tratar o tipo de doentes que tratamos hoje. Este é um dos cinco hospitais do mundo a tratar doentes com insuficiência tricúspide severa, que são inoperáveis. É uma técnica que ainda não está disponível para todos, e que foi iniciada aqui, no Serviço do CHVNG/E há dois meses. Cada vez mais, há uma conjugação entre a alta tecnologia e o êxito do diagnóstico e do tratamento dos doentes. No entanto, há que explicar ao doente o que se passa. Acho que cada vez essa relação é mais reforçada.

Todavia, há uns meses, o bastonário da Ordem dos Médicos referiu que se poderia estar a passar um fenómeno que apelidou de “McDonaldização” da Medicina, em resultado do esforço de tratar mais, de ser mais eficiente, de acabar com as listas de espera. Há aqui alguma mudança de paradigma relativamente ao que se passava há 20 ou 30 anos?

Sim, claro. Primeiro, a quantidade de doentes é maior. Depois, hoje em dia, há mais controlo naquilo que se faz. As ciências da computação vieram introduzir um fator muito importante. Quando vim para este hospital, os doentes saíam sem saberem a que tinham sido operados. Não havia registo, não havia nota de alta. Hoje em dia, pelo menos neste serviço, e sei que em todo o hospital, nenhum doente sai sem um relatório e sem haver um registo informático do que foi feito. Isso é muito positivo. Claro que há uma pressão muito grande por causa dos números, e não considero que isso seja bom. No entanto, deve haver controlo, e não percebo por que razão o Fisco nos controla até ao último tostão e não são usados os mesmos sistemas para saber quantas análises o doente fez e onde, evitar a repetição das análises, dos raios-x, das TAC, etc. Depois entra-se num ciclo que torna difícil descortinar a boa medicina em contraponto do negócio. Ainda hoje foi instalado um sistema de dose de radiação aqui no serviço. Os dois laboratórios de hemodinâmica, as duas angiografias e o Angiotac estão ligados e os técnicos, os engenheiros e os administradores do hospital podem saber, ao minuto, quantos doentes foram tratados, que dose de radiação receberam, que médicos aplicaram o procedimento, qual a quantidade de contraste usado, se o aparelho esteve a ser usado, se teve tempos de espera desejáveis ou não, ou seja, podem ter o quadro completo do que se passa em relação ao equipamento, que é pago por todos nós. Esses meios de controlo existem, é preciso é pô-los a funcionar e usá-los criteriosamente em proveito de todos nós. Os desperdícios são muito grandes.

Referiu um aspeto muito importante, que é terem os conselhos de administração, não só neste hospital mas em todos, acesso àquilo que vai acontecer em cada serviço. O Secretário de Estado da Saúde, Dr. Manuel Delgado, referiu em entrevista à Tecnohospital que “é exigido um perfil mínimo de reconhecimento de valores, de responsabilidade”, aos dirigentes dos hospitais, quer de topo, quer intermédio. Considera que é exigível um perfil mínimo ou um perfil máximo?

Eu acho que deve ser exigido um perfil máximo. Eu trabalho apenas no hospital, sou funcionário público a tempo inteiro, mas isto é uma condição muito pessoal. Há conflitos de interesse e, portanto, optei por trabalhar só na parte pública porque se trabalhasse na parte privada, obviamente ficaria lá em exclusividade. Eu acho que um diretor de serviço deveria ser um médico a tempo inteiro no respetivo serviço; no entanto, é uma opinião muito pessoal e não tem nada a ver com o sistema.

Há uma aposta deste serviço e de outros deste hospital não apenas na componente assistencial mas também na formação e na investigação. Qual a sua opinião relativamente à cooperação com os PALOP?

A postura do serviço, e quando eu falo do serviço falo em nome de todos, é muito virada para a formação. Até por lei, o Serviço de Cardiologia deste hospital recebe jovens médicos para fazerem aqui o seu treino de Cardiologia. Para o mercado de trabalho, este é um serviço de formação de pessoas. Além da parte clínica, estamos muito virados para a investigação clínica. Trata-se de aproveitar as sinergias de conhecimento médico e tecnológicas para fazer avançar a ciência. Como somos um serviço de formação, e até pelos meus conhecimentos nos países de expressão portuguesa, foi um passo natural abrir o serviço a médicos, enfermeiros e técnicos de Angola, de Moçambique, da Guiné e de quem nos vem bater à porta. Hoje em dia, temos médicos e enfermeiros de Angola em formação. Tem havido, ao longo destes anos, uma componente muito grande de treino dos países de expressão portuguesa, e tem sido muito gratificante, porque estes profissionais vão reproduzir nos países de origem aquilo que aprenderam aqui. Isto tem sido reconhecido com convites aos membros deste serviço para se deslocarem a congressos e outros eventos realizados nesses países.

Inclusivamente, este serviço é pioneiro na Telemedicina, montado com Angola e Moçambique. Eu sempre estive convencido de que a Medicina e a Cardiologia andam a par e passo com a Engenharia e com os sistemas informáticos. Há uma relação muito grande entre este serviço e a Universidade de Aveiro e agora a Universidade do Porto, com projetos conjuntos.

Realizou também uma intervenção na Mongólia. Em que moldes se deu essa colaboração?

Foi uma colaboração particular. Há cerca de 20 anos, os governantes da Mongólia e do Luxemburgo reuniram-se, e daí saiu um projeto para a Mongólia, financiado pelo Luxemburgo, para montar um sistema de Telemedicina. Passados cinco anos, eu e um colega italiano fomos convidados, possivelmente por causa de publicações nossas, para ir à Mongólia auditar esse programa. Para meu espanto, eles tinham conseguido, com um processo algo artesanal, ligar sete ou oito hospitais provinciais na Mongólia, que é um país vastíssimo, ao hospital central. Transmitiam imagens em jpeg e tinham um servidor para transmissão de guidelines. Todo o sistema estava a funcionar perfeitamente. Depois, aproveitando a rede de fibra ótica que, entretanto, o Japão montou em todo o país, eu desenhei-lhes um network ligando os ramais de fibra ótica aos ficheiros de saúde. Os hospitais provinciais foram equipados com ecocardiógrafos com possibilidade de gravação de imagens em movimento e foi feito um network. Eles enviavam imagens dinâmicas para o servidor central, os médicos do hospital viam as imagens, davam o seu feedback, e o doente continuava o seu tratamento lá ou vinha para o hospital central para tratamento. Foi inclusivamente comprada uma máquina de circulação extracorporal e um aparelho de anestesia, e formou-se ali um núcleo de cirurgia cardíaca. Passados 10 anos, o programa terminou e nós fomos novamente convidados para fazer a auditoria final. A rede de fibra ótica tinha sido estendida a todos os hospitais provinciais, e em todos eles foram montados ecógrafos com possibilidade de enviar imagens dinâmicas. A rede foi estendida à parte materno-infantil, e nestes 10 anos a mortalidade infantil desceu mais de metade. Diminuiu também em mais de metade a mortalidade associada às doenças cardiovasculares Um verdadeiro exemplo, com meia dúzia de milhões de euros.

O serviço que dirige está bem equipado tecnologicamente ou precisa de melhorias?

É necessário substituir um equipamento na sala mais antiga, que tem 13 anos e para o qual já nem existem peças de substituição. Um dia que avarie deita-se fora e o serviço fica desprovido, durante meses, de um equipamento essencial. A razão de existirem duas salas de cateterismo é que se uma delas avariar existe sempre a outra a funcionar. Por outro lado, se uma estiver a trabalhar e entrar um doente com enfarte agudo, o que acontece com frequência, se não houver duas salas o doente pode morrer ou ficar em muito mau estado. Ora, uma das salas está em risco de rutura iminente. Precisamos também de substituir o Angiotac. Atualmente, com as novas tecnologias já é possível ver, de uma maneira não invasiva, o coração de um doente usando menos de um segundo, com 20 cm3 de contraste e menos radiação do que aquela que se apanha ao atravessar o Atlântico de Lisboa a Nova Iorque, e isto com uma qualidade muito grande. Com um equipamento adequado poderíamos fazer screening. Em metade das mortes causadas por doença coronária, a primeira manifestação da doença é a morte súbita. Fazendo screening em populações de risco – doentes de meia-idade, homens, diabéticos, hipertensos, fumadores, com colesterol muito elevado – permite detetar a doença antes de se manifestar. A patologia cardíaca atinge uma faixa etária dos 30 aos 60 anos, ou seja, estamos a falar de população ativa que está a produzir riqueza. Pensando só em números, não em vidas, são gastos enormes para a sociedade, e os indivíduos são arredados da força de trabalho.

O serviço dispõe de tecnologia muito avançada, para a qual o SIE não está provavelmente preparado. Em que moldes é feita a manutenção desse equipamento?

A manutenção é feita pelas empresas que vendem os equipamentos. Hoje em dia os equipamentos são de tal forma sofisticados que a manutenção de cada equipamento tem de ser feita pelo engenheiro da respetiva empresa, porque outros não terão a competência técnica nem os instrumentos de hardware e software para essa tarefa.

Em Coimbra existem Centros de Responsabilidade Integrada, agora chamados de Unidades de Gestão Integrada (UGI). Aqui o modelo é o mesmo?

Aqui temos a UGI do tórax e circulação, que compreende a cirurgia cardíaca, a cardiologia e a cirurgia vascular. Isso foi instituído para fazer com que os diretores de serviço não tivessem contacto direto com a administração, o que do meu ponto de vista é muito mau. O diretor de serviço tem de ter contacto direto com o Conselho de Administração e não através da “porta do cavalo”. O serviço deve ter um gestor, essencial para uma colaboração efetiva, de natureza gestionária, participativa, mas o contacto tem de ser direto com a administração e não através das UGI. O diretor de serviço, quando empenhado, é um interlocutor privilegiado do Conselho de Administração.

Tem havido por todo o país uma fusão de hospitais em centros hospitalares, às vezes muito distantes entre si. Em Coimbra chegou-se ao ponto de fazer um centro composto por três centros e fecharam-se algumas unidades. Havia dois serviços de urgência e passou a haver apenas um. Agora aflui tudo aos HUC e passam-se horas na urgência. Aqui também houve uma concentração. O que acha deste processo?

Isto é um problema de organização da Saúde em Portugal, que eu acho má. O Hospital de Roterdão, na Holanda, tinha 1200 camas. O serviço de urgência do hospital era uma sala onde havia um médico residente (interno), um técnico de raio-x e um ou dois enfermeiros. A organização da saúde era feita de maneira a que nenhum doente entrasse no hospital, na Cardiologia, na Cirurgia ou na Obstetrícia ou até com um enfarte agudo sem ter sido visto pelo médico de família. A peça fundamental do sistema de saúde desses países é o médico de família. Eu quando estava de serviço na unidade coronária, se quisesse uma TAC às 3h da manhã ou uma cirurgia de urgência ao abdómen ou à cabeça, pegava no telefone e chamava o colega de serviço. Os únicos doentes que chegavam ao hospital vindos de fora eram aqueles que a polícia encontrava na rua. A organização do sistema de saúde nada tem a ver com a do nosso país. Aqui dá-se esta loucura de centenas de doentes a cair nos serviços de urgência. Deveriam ser vistos na Medicina Familiar, que deveria funcionar em rede, mas por alguma razão isso não acontece. Alguns serviços e hospitais não têm razão de existir, e, portanto, os hospitais deveriam ser agregados, até pela questão do número de médicos e enfermeiros a tratar esses doentes. Os cuidados diferenciados não devem estar espalhados por todo o lado, mas sim concentrados, segundo critérios clínicos e demográficos, como o governo fez e muito bem, em Centros de Excelência. A experiência está concentrada ali e não espalhada. Uma coisa é fazer cirurgia cardíaca e operar 1000 doentes, outra coisa é operar 100. A experiência ganha e o treino é diferente perante 1000 ou perante 100.

Em Coimbra, não faz sentido que exista um serviço de Cardiologia de um lado do rio e outro do outro lado. No edifício onde funciona o serviço de cirurgia cardíaca do Prof. Manuel Antunes, o último piso está vazio. Coimbra poderia ser o primeiro heart centre do país, juntando a Cardiologia e a Cirurgia Cardíaca. Por motivos que desconheço, continua a existir uma sala de hemodinâmica de um lado e outra de outro.

Com o desenvolvimento que a tecnologia ainda vai ter nos próximos anos, será que o médico vai ser assim tão importante nessa engrenagem?

Cada vez mais importante. A tecnologia vai auxiliar cada vez mais o médico a fazer bons diagnósticos e a fazer bons tratamentos. Não obstante, a peça fulcral da medicina é o médico. Obviamente que a computorização, os sistemas informáticos e a tecnologia são determinantes. Hoje em dia a cirurgia da próstata é muito mais bem-feita por um sistema robótico do que pelo médico, mas quem toma a decisão é o médico.

Vasco Gama Ribeiro é médico, tendo-se especializado em Cardiologia no Hospital de São João. Terminada a formação, foi para a Holanda, onde fez nova formação, na cidade de Roterdão, tendo aqui permanecido quatro anos. Regressado a Portugal, ajudou a instalar o Serviço de Cardiologia do Hospital Eduardo Santos Silva, agora integrado no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho. Trabalha naquela unidade desde 1984. É o atual diretor do Serviço de Cardiologia.

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