Entrevista a Ilídio Pelicano, arquiteto responsável pelo novo Hospital do Funchal

Ilídio Pelicano traça um retrato minucioso do atual panorama dos concursos públicos na área hospitalar e das dificuldades que os candidatos atravessam. Resume ainda o impacto que sete anos de desinvestimento na área técnica e científica e que a extinção de organismos como a Direção-Geral das Instalações e Equipamentos, sucessora da Direção-Geral das Construções Hospitalares, tiveram na transmissão de conhecimento desta matéria.

Entrevista por Fernando Barbosa, Durão Carvalho e Cátia Vilaça

Texto e fotografia por Cátia Vilaça

Como começou a sua carreira?

Quando entrei para a Escola Superior de Belas Artes não me passava pela cabeça que alguma vez iria fazer um hospital na vida. Era demasiadamente complexo, demasiadamente grande, demasiadamente subtil em todas as singularidades. Era também algo que não me atrevia a ambicionar.

Havia, no entanto, uma escola de sabedoria e de ensinamento que era a Direção Geral das Construções Hospitalares. Todos nós aprendemos com os técnicos que aí desenvolviam a sua atividade e também com todos os responsáveis pelas grandes instalações hospitalares – para aprender a conhecer é preciso contactar com as pessoas que sabem mais que nós. De um momento para o outro tudo isto acabou, ou seja, os grandes departamentos que tinham sabedoria a sério desapareceram. Começou a fazer-se normativas, publicações, mas investigação deixou de se fazer, e deixou-se também fazer projeto de arquitetura hospitalar. Chegados aqui, é importante dizer-se que tivemos um período de sete a oito anos de falta de investimento hospitalar. Em 2009 todos sabíamos que o país estava a atravessar um período de falta de investimento, e nessa altura a nossa equipa já se preocupava com isso. Com a chegada da troika, deixou completamente de haver investimento hospitalar, e não só em Portugal. Todos os projetos que estavam contratualizados com as entidades governamentais ficaram suspensos. Não houve cartas, e-mails ou faxes informando das suspensões. As pessoas que trabalhavam connosco na ARIPA foram convidadas a sair porque o Estado ficou mudo. Esperámos uma informação tanto quanto nos foi possível mas o silêncio manteve-se. Não se olhou seriamente para a ciência, investigação, desenvolvimento, para o projeto, etc. As instalações e equipamentos foram-se degradando e as instalações novas não chegaram a iniciar-se. Ainda hoje temos projetos ganhos que não foram retomados, como é o caso dos hospitais de Barcelos e do Seixal e da remodelação/ampliação do Hospital de São João do Porto, que pararam por falta de liquidez financeira governamental.

Já tinha esses projetos finalizados?

Não. Tinha-os contratualizados, estavam em desenvolvimento e eu honro os compromissos que assumo contratualmente. Diz-se que palavra dada era palavra honrada, e orgulhamo-nos na ARIPA de honrar a palavra, mas hoje estamos numa situação muito litigante. Contrato feito é para rasgar e litigar a seguir. É o que acontece neste momento, na maioria dos casos.

Foram só esses contratos que foram rasgados?

Não. Aconteceu o mesmo com o Hospital da Póvoa de Varzim/Vila do Conde, das Caldas da Rainha e com a segunda fase do Hospital da Guarda. O Hospital de Castelo Branco foi suspenso porque a troika/governo o mandou suspender. Tínhamos uma forte carga de trabalho e passámos a ter zero, e toda uma vida de trabalho de cerca de 40 anos de profissão serviu para que os profissionais que connosco trabalhavam pudessem sair calmamente. Hoje estão na Austrália, Nova Zelândia., Colômbia e muitas outras paragens. Quando quisemos ir buscá-los para retomar o Hospital Central da Madeira a sua vida estabilizada já não permitiu o seu regresso.

Hoje, quantos arquitetos tem a trabalhar aqui?

Somos cerca de 30, arquitetos e duas secretárias.

Então hoje já tem contratos que lhe permitam ter novamente esse número de pessoas…

Não tenho contratos, mas honro os contratos assumidos. O Hospital Central da Madeira teve de ser retomado pelo valor que faltava pagar, quando o contrato foi suspenso pela Assembleia Regional da Madeira.

Está a fazer a revisão do projeto mas o projeto inicial já era seu, certo?

Sim, ganhámo-lo em concurso público internacional sob anonimato. Era um contrato que permitia, à data, que 30 arquitetos e cerca de 100 engenheiros pudessem trabalhar. Já tínhamos desenvolvido o anteprojeto, ou seja, já tínhamos recebido 55% do valor total do projeto. Estamos agora a fazer um projeto novo, porque é de um “novo” projeto que se trata, quando se reduz a área inicialmente prevista de 223 mil metros quadrados para cerca de 173 mil metros quadrados.

Há quantos anos tinha sido feito o anteprojeto?

O Programa Funcional do hospital foi realizado em 2006 e nós vencemos o concurso em 2008. Entregámos o anteprojeto e foi aprovado em 2010, ou seja, há sete anos que o projeto estava parado, tendo agora sido retomado. Agora estamos atrasados relativamente à evolução tecnológica. Hoje o Hospital já não tem nada a ver com aquilo que era. A radioterapia é diferente, a TAC é diferente, as ressonâncias magnéticas são diferentes, a forma de fazer intervenções cirúrgicas é diferente. A cirurgia de ambulatório hoje tem em conta os laços familiares e uma aprendizagem da família em relação aos cuidados a ter com o doente, porque o SNS interliga-se com tudo isto. Nós temos de ensinar a nossa população a cuidar dos seus doentes porque aquilo que se fazia numa grande intervenção cirúrgica hoje é feito em pouco tempo em cirurgia de ambulatório, mas depois os doentes têm de recuperar em casa. Será que vamos deixar as pessoas nos internamentos onde o alojamento prolongado de um doente é altamente dispendioso? O melhor é serem recuperados no seio da família mas a família tem de ser ensinada a cuidar do seu doente, que pode na mesma continuar a ir ao hospital e ter um acompanhamento condigno. O hospital hoje em dia é fundamentalmente para acompanhar doentes e para prevenir doenças.

Houve uma grande evolução na área da gestão técnica centralizada, com mudanças muito significativas.

Houve. E relativamente a isso, as mudanças não se registaram apenas ao nível da gestão técnica, mas também em tudo o que tem a ver com a economia energética. Um edifício desta dimensão não pode ser olhado sob o ponto de vista do custo da construção ou do projeto. Um edifício hoje mede-se pelo custo da manutenção, da exploração e de muitos outros fatores. Ao fim de dois anos, nós gastamos com um edifício hospitalar o mesmo que gastamos com a construção, projeto, juros, etc. A título de exemplo, repare-se que nas parcerias público-privadas com ato médico os custos se dividiam em duas partes. O contrato em termos de projeto/construção/ manutenção do hospital era a cerca de 28/30 anos. Enquanto poderíamos, na construção, manutenção, financiamento, juros, etc., andar na ordem dos 150 milhões de euros. Somente oito anos, para a gestão e prestação de cuidados clínicos pelos privados, faziam com que a proposta global andasse na ordem dos 600 milhões. Estamos, a título de exemplo, a referir-nos a um hospital com 50 mil metros quadrados.

Esta entrevista vai sair num conjunto de artigos ainda relacionados com o Congresso “Os Desafios de um Hospital Atual”, que decorreu em setembro no Funchal e no qual participou com uma comunicação. Gostaríamos, por isso, que nos desse alguns pormenores sobre a parte arquitetónica do empreendimento, que ainda não está em construção.

Uma peça arquitetónica desta dimensão, que tem 173 metros quadrados incluindo instalações técnicas, não é abarcável por uma cabeça única. É fruto de uma equipa que envolve dezenas de arquitetos e dezenas de engenheiros das mais variadas especialidades. O que se passa é que este hospital é retomado numa altura em que o país está atrasado cultural e cientificamente na ordem dos oito anos, sem ter havido qualquer investimento nesta área. Quando nos foi solicitado, nós respondemos “presente” e tentámos recuperar em muito pouco tempo tudo quanto não nos foi possível, paulatinamente, ir adquirindo e experienciando em termos de instalações hospitalares ao longo desses oito anos de imobilismo. O que se pretende é muito simples e, ao mesmo tempo, muito difícil: mudar mentalidades. Refiro-me, em primeiro lugar, à classe médica. Um hospital não é propriedade dos médicos, é propriedade da população, dos utentes. Um hospital não pode ser um centro de cura, é um centro de prevenção e de ensino. Não pode ser um espaço onde o médico tenha uma chave e se permite fechar um departamento como sua pertença. O Hospital Central da Madeira irá ser um hospital plurifuncional, ou seja, não existirão gabinetes que pertençam ao fulano A, B ou C, com exceção naturalmente de alguns, como sejam o de Oftalmologia ou de Pediatria, ou até de doenças mentais, entre outras valências, que podem ter especificidades próprias, mas tudo o resto, desde as unidades de internamento aos gabinetes de consulta e exames especiais é multivalente. As unidades de internamento são todas iguais e serão utilizadas de acordo com as necessidades. Quem dirige um hospital é o departamento de gestão, quem determina o uso das camas são os gestores do hospital, o que significa que não há proprietários locais no hospital. Por outro lado, na elaboração deste novo Programa Funcional procurámos, para além de reformular o programa funcional anterior, ouvir todos os técnicos responsáveis pelas especialidades do hospital.

Sob o ponto de vista tecnológico, é evidente que privilegiamos a economia de manutenção da construção ao longo dos anos. Deixámos a política miserabilista de investir no mais baixo preço para investir, dentro da relação qualidade-preço, no mais razoável e que possa durar o máximo de tempo possível sem se degradar.

O clima da Madeira é altamente agressivo devido à humidade, e os equipamentos podem degradar-se com muito mais facilidade do que numa zona do continente.

Por outro lado, tentámos criar uma separação completa de circuitos de visitas, de profissionais e de circuitos de manutenção. É preciso prever a hipótese de, no edifício, haver necessidade de fazer uma intervenção, e poder fazê-la, sem que haja necessidade de parar o serviço. Foi criado um conjunto de soluções ao nível de circulação, de acessibilidades de pessoal de manutenção, de pessoal específico, que possa atacar os problemas sem incomodar e sem interferir na continuidade dos atos médicos e limitar os inconvenientes de incomodar o doente.

Criámos ainda um piso técnico, que separa um piso logístico, onde se situam a cozinha, a lavandaria, a farmácia, o biotério, as instalações e equipamentos etc., de tudo quanto é o polo técnico-médico e internamentos. Aí temos blocos operatórios, imagiologia, a entrada principal e da urgência, e uma panóplia imensa de outros serviços e é esse piso que acompanha, em pleno, todo o hospital. É preciso também permitir que os circuitos de infetados não se misturem com circuitos que, à partida, o não são. O maior perigo que existe num hospital é a transmissão de infeções entre doentes. O indivíduo pode entrar com uma doença e sair com 10.

A parte do projeto de Arquitetura no Hospital Central da Madeira está já completa ou ainda há trabalhos que o seu gabinete tenha de fazer?

Para os arquitetos, o projeto nunca está completo. Se nos derem três anos para fazer um projeto, gastamo-los e o tempo falta-nos. Se nos derem cinco também nos falta tempo. Não podemos impor ao nosso cliente que compre um Rolls Royce quando um Fiat ou um BMW também fazem o serviço. Quero dizer com isto que temos de fazer um projeto que vá ao encontro da disponibilidade económica que o cliente tem para investir face ao programa que nos entrega. Eu não posso obrigar o cliente a dizer que vai gastar 10, 20 milhões ou 200 milhões. Eu tenho de fazer a arquitetura de acordo com o orçamento que me dão. A obra de arte em arquitetura é aquilo que nós conseguimos fazer com a maior qualidade, com as limitações económicas que o país atravessa e que o cliente, por força de variadas circunstâncias, nos impõe para gastar. Fazermos projetos que ultrapassem o orçamento é fácil mas nem todos somos génios que estejam ao abrigo de qualquer crítica, quando trabalhamos para uma entidade pública.

Portanto, o que impede de fazer a obra no Funchal é um problema financeiro e não um atraso na conclusão do projeto, certo?

O que impede ou pode fazer atrasar a obra é enredarmo-nos em questiúnculas políticas porque o dinheiro não tem de existir no momento A para que o projeto siga o seu desenvolvimento. Um projeto faz-se e vai-se gastando o dinheiro ao longo dos anos, é plurianual. Primeiro faz-se o projeto, depois arranca-se com a obra, e depois o Hospital tem três a quatro anos para ser construído. O Estado não necessita de ter o dinheiro, necessita é de fazer uma previsão lógica relativamente aos investimentos que tem de fazer ao longo dos anos e do tempo que vai demorar a gastá-lo. Para isso, tem de ter, dentro dos seus corpos científicos, técnicos e administrativos, e sobretudo da parte económica, gente que saiba o que está a fazer. Normalmente, nos Orçamentos de Estado, atira-se um valor e nunca se pergunta se esse valor chega. É por isso que os orçamentos previstos em Orçamento de Estado rebentam, e não dão para construir determinado tipo de instalações.

Respondendo à sua pergunta, existem aí várias nuances: eu não me quero meter em política porque sou técnico. No entanto, é bom que consideremos que todas as ilhas dos Açores, que são de periferia, a Madeira, que é de periferia, o continente, que é de periferia relativamente à Europa, são zonas desfavorecidas, não é só desfavorecida a Madeira e os Açores relativamente ao continente. Eu acho que devia existir um acerto global de previsão e acordo ao longo de vários anos entre as diversas forças políticas mais importantes deste país, para que projetos de âmbito nacional e de interesse nacional fossem assumidos por todas elas, seja qual for a cor política. Se isto for um projeto de interesse nacional é nosso, e tanto faz ser da Madeira como do continente. Se o Hospital Lisboa Oriental ora previsto é um hospital de interesse nacional, é ao mesmo tempo de interesse da Madeira e do continente. Se alguém tem problemas de foro oncológico, que tenha de fazer tratamentos semanais, acompanhado pela família, tenha de se deslocar ao continente porque só no continente é que existem meios de diagnóstico e de tratamento, então nós vamos ter aqui a família e os doentes quanto tempo? Temos de pensar que, pese embora a população da Madeira não justifique determinadas especialidades, provavelmente temos de ter lá certos serviços, porque se um indivíduo tiver um ataque cardíaco morre durante a viagem de avião, que no caso da Madeira demora uma hora e meia e dos Açores duas horas. Se não houver um serviço de Diálise nos Açores ou na Madeira como deve ser, como se faz Diálise? Deixa-se um ser humano morrer? Deixemo-nos de políticas e encaremos esses equipamentos, se eles são ou não de interesse nacional, e para mim Açores, Madeira e continente são parte do mesmo todo e…uno. Provavelmente temos de encarar da mesma forma Trás-os-Montes, Beira Alta, Beira Baixa, Minho, Centro Alentejano e todas as zonas periféricas que há neste país.

O projeto então está pronto (ou há prazos definidos)?

Tudo aponta para que esteja revisto, isto é, com uma segunda análise do grupo de arquitetura e do revisor, entre março e abril de 2018, o mais tardar.

Portanto, independentemente das questões que têm vindo a ser discutidas de financiamento, não é por falta de conclusão do projeto que o hospital não é construído, certo?

Não há a menor dúvida de que o projeto vai estar pronto. Para mim é muito simples: em qualquer país evoluído o projeto demora mais do que a construção. O Hospital de Cascais demorou 2,5 anos a projetar. A construção demorou cerca de dois anos, e o mesmo aconteceu na Ilha Terceira. Quando nós retiramos tempo de pensamento a um projeto, o Estado está a querer comprar uma coisa de má qualidade. Tem de dar o tempo suficiente por um lado, e tem de dar aos projetistas condições necessárias e suficientes, em termos monetários, para que um projeto seja feito, para que seja possível existirem gabinetes com 30 arquitetos, que têm de ser pagos. Mas se a ARIPA não receber, onde vai buscar o dinheiro? A financiamentos bancários. E quando não puder pagá-los, entra em falência, e lança no desemprego outras 30 pessoas. O Estado ou pensa nisto ou cavará a sua própria sepultura..

É sabido que existem regras que impõem penalizações por erros e omissões excessivas e provavelmente até estamos hoje perante uma situação que pode ser incomportável. Como disse, ninguém faz projetos sem erros. O Código dos Contratos Públicos (CCP) exige um limite, creio, de cinco por cento...

Não admite nenhum limite. O limite a que se refere é aquilo que por iniciativa do dono de obra se permite ter em termos de trabalhos não previstos, ou seja, melhorias por iniciativa do dono de obra, limitadas a cinco por cento. Antigamente, o Decreto nº 59/99 não permitia isso. Ia-se aos 15 por cento e em casos excecionais aos 25 por cento, e os projetistas discutiam com o empreiteiro adjudicatário. Hoje existe o pronunciamento pré-contratual sobre as propostas dos concorrentes à obra e as multas por erros e omissões de projeto que podem ir até três vezes o valor dos Honorários do projeto, a pagar pelo projetista.

Se por um lado existe uma situação que, para os arquitetos, pode ser muito complicada, e partindo-se do princípio que ninguém consegue fazer projetos sem erros e omissões, também existe o outro lado da moeda que é o dono de obra ver-se perante situações de projetos que, provavelmente por não terem sido revistos, são incomportáveis. Como é possível resolver isto?

Eu penso que há soluções. Os gabinetes de projeto de engenharia e arquitetura estão sujeitos a todas as atribulações do exercício de uma profissão, que começam logo pela existência de prazos muito penalizantes, porque o dono de obra preocupa-se por vezes mais em fazer política do que propriamente com a qualidade do projeto. É fundamental haver prazos razoáveis para que um projeto seja feito. O segundo aspeto é analisar o que é que os erros e omissões, que acontecem, retiram a um dono de obra. Retiram a capacidade, se forem exagerados, de ter as melhores propostas, porque retiram competitividade. O Estado tem de lançar a concurso valores de obra que sejam efetivamente exequíveis e que contemplem em si o lucro razoável para as empresas porque se não houver lucro elas não podem investir, não podem contratar os melhores técnicos, não podem substituir os equipamentos, e portanto não pode colocar-se um valor de obra que obrigue o empreiteiro a ganhá-la num prazo curto e pelo mais baixo preço. A partir daí entra-se numa litigação. Tenta-se, por um lado, aumentar o prazo por parte do empreiteiro, porque o estaleiro vale dinheiro, e em vez de se entrar na obra com arquitetos e engenheiros, entra-se com juristas e tudo isto se transforma numa luta insana. O Estado fez um decreto que provoca a litigância. Para mim, há de facto a hipótese de uma solução, mas o Estado tem de informar a sociedade sobre a forma como calcula o valor das obras que lança a concurso, que valores por metro quadrado é que foram definidos face à tipologia de edificação que pretende realizar – seja um centro cultural, seja uma escola ou um hospital. Nós podemos estar a trabalhar num hospital com 1400 euros por metro quadrado de custo de construção numa construção de raiz, mas se entrarmos na remodelação de um hospital antiquado, provavelmente temos de disparar os preços. Tem de fazer-se uma orçamentação correta, e para isso necessitamos de colaboradores no Estado que digam consciente e cientificamente ao seu ministro e ao seu secretário de estado que determinado tipo de obra que se pretende e é necessário fazer, não custa 1000 euros, custa 1400, porque se forem previstos 1000 euros não se faz obra. O orçamento tem de ser coordenado e depois o político não pode vir para a praça pública afirmar que adjudicou à melhor proposta, ou seja, à de preço mais baixo, quando o Código dos Contratos Públicos permite que um empreiteiro fique com a melhor classificação de preço “comprando” a obra 40 por cento abaixo do valor que o orçamento previsto pelo Estado estabeleceu para a mesma. Depois, é preciso saber como é que o Estado estabeleceu o preço, em que se baseou, e quem é o responsável pelo estabelecimento do valor que é lançado a concurso. Nós, como profissionais, temos uma palavra a dizer sobre esses orçamentos, se são ou não adequados. Quando cometemos erros e omissões, prejudicamos o dono de obra em matéria de competitividade. Se tivéssemos previsto um determinado trabalho provavelmente os empreiteiros tê-lo-iam considerado, e querendo ganhar a obra, provavelmente não iam definir 20 a 30 por cento de margem de lucro mas eram capazes de se limitar a definir cinco ou 10 por cento de margem tendo em conta o valor máximo definido para a obra.. Quando obrigam os projetistas, engenheiros e arquitetos a pagar até três vezes o valor dos seus honorários, transformam o arquiteto e o engenheiro em contribuintes líquidos, e isto na minha perspetiva é um enriquecimento indevido do Estado.

O que quer dizer em relação aos preços de obra exageradamente baixos é que o empreiteiro pode ser levado a tentar compensar o seu trabalho através da apresentação de erros e omissões?

Transformam todo o contrato numa litigância, se ganharem a obra ao mais baixo preço e no prazo mais curto.

Levantam-se, portanto, duas questões: uma é o prazo, que influencia diretamente a qualidade do projeto, e obviamente se não for dado um prazo aceitável, a probabilidade de o projeto ter erros é maior. A segunda questão é que, se os preços não forem justos, isso vai gerar litigância que se pode transformar, até artificialmente, em erros e omissões.

Sim. E eu não quero tirar aqui mais qualquer tipo de ilação, mas há outro aspeto: enquanto os empreiteiros têm as suas classificações ao nível das suas propostas, muito pouco valor dão ao prazo e por vezes à capacidade técnica, porque não há nenhum empreiteiro que não tenha alvarás para construir, e que vá buscar toda a documentação aos bancos para poder concorrer, e nós olhamos para o panorama das nossas empresas e elas estão todas falidas, mas enquanto o Estado permite às empresas um abaixamento de até 40 por cento relativamente ao valor que estabeleceu para o valor da obra, relativamente aos projetistas é ainda pior. O CCP define que o projetista pode ir até um desconto de 50 por cento do valor que o Estado estabelece para concurso. Se o Estado estabelecer 200 mil euros para concurso, pode haver propostas de 100 mil e um cêntimo, ou seja, 50 por cento, e só não são de 100 mil porque a proposta pode ser eliminada. Com metade do preço e com esses abaixamentos e depois ainda com o valor dos ajustes diretos até 75 mil euros, é impossível fazer um projeto decente.

No meio disto tudo é importante que os gabinetes tenham capacidade de resposta, que evoluam tecnicamente, mas mais: que se preparem relativamente ao futuro. Dentro de dois, três anos, todos nós vamos ter de estar a trabalhar numa ferramenta informática que se chama BIM (Building Information Modelling). Quando ganhámos os projetos que ganhámos, comprámos todo o hardware e software de BIM e formámos toda a gente deste gabinete. Há um abaixamento de rentabilidade a partir do momento em que se manda formar porque depois é preciso treinar e só ao fim de um ano, um ano e meio é que começamos a ter a rentabilidade das pessoas. Após termos formado as pessoas, como o Estado nunca enviou uma carta a dizer que o projeto estava parado, pura e simplesmente vimo-nos obrigados a despedir colaboradores acabados de formar, para além de todo o software e hardware que ficou sem utilização. Neste momento só estamos a admitir pessoas que tenham conhecimentos em BIM.

Neste país, que é pequeno, não existe, na área hospitalar, trabalho suficiente para garantir a sobrevivência de equipas. Estou a pensar, por exemplo, na área da programação. Na sua área, como funciona a concorrência e como se sobrevive num país pequeno como o nosso e que de vez em quando tem interrupções na atividade? Quantos gabinetes existem para trabalhar com credibilidade nesta área?

Somos um país pequeno, mas há sete ou oito anos estávamos no “top” do conhecimento científico ao nível do projeto hospitalar. Nós inclusivamente trabalhávamos e fizemos consórcios com gabinetes dinamarqueses, finlandeses, franceses, trabalhámos para África e para a América Latina, normalmente ligados a pessoas com boa formação ou com empresas portuguesas que estão lá instaladas. Nenhum dos empreendimentos foi para a frente, parou tudo. Isso é um aspeto, o segundo é como sobrevivemos. Nós não sabemos fazer só hospitais, e quando a dor aumenta, também concorremos a outro tipo de projetos. Ganhámos o Centro de Cultura e Congressos das Caldas da Rainha e fizemos o Instituto de Cardiologia Preventiva de Almada, para privados. Também fizemos escolas e recuperação/reabilitação habitacional. Por outro lado, acreditei sempre que, mais tarde ou mais cedo, o Governo alguma vez tinha de despoletar trabalhos. O país não podia continuar numa situação de morte lenta porque nós temos muitos hospitais que precisam de remodelações. Eu apostei numa situação em que não havendo dinheiro para hospitais novos, é necessário todos os dias fazer remodelações. Os nossos clientes não se perderam. Eu aposto muito na recuperação e na remodelação e também noutras áreas que também sabemos projetar.  

O segredo é, portanto, a diversificação…

90 por cento do nosso trabalho é arquitetura hospitalar, e 10 por cento é para tentarmos sobreviver. E sobrevivemos.

Sobre a concorrência, eu preferia que fosse o Governo a responder e que atirasse cá para fora uma listagem dos gabinetes que ainda se permitem existir, ou seja, quais foram as consequências, em termos tecnológicos, em termos científicos e em termos de conhecimento desta arte de projetar hospitais, do desinvestimento efetuado nos últimos nove/10 anos. Havia vários e a concorrência é altamente salutar porque nos obriga a evoluir, mas agora eu olho para o panorama que existe e não vejo grande coisa. Vejo muito pouca gente a ser capaz de fazer hospitais.

Um arquiteto quando começa a trabalhar nesta área, ao fim de seis meses não se pode ainda considerar projetista hospitalar autónomo…

Ao fim de 10 anos, um arquiteto a trabalhar exclusivamente em arquitetura hospitalar pode considerar-se com capacidade para ensinar alguma coisa aos vindouros. A tecnologia hospitalar evolui muito rapidamente – todos os anos os modelos dos equipamentos mudam e a evolução dispara, bem como a forma de fazer medicina.

Com o desaparecimento da DGCH e da DGIES, onde é que os novos arquitetos vão buscar o conhecimento para poderem aprender?

Quando um colega mais jovem me coloca um problema e diz que não sabe fazer eu sento-me ao lado e pensamos juntos. Aprendem connosco, com quem tem mais experiência. Não há soluções otimizadas ao nível do projeto hospitalar. Não há dois hospitais iguais e não há soluções repetíveis de um hospital para outro. O que há é um conhecimento que pode ser transportado de um lado para outro mas as soluções, a interligação entre um serviço e outro, a forma como se organiza um hospital evolui com o tempo, com a experiência, aprendendo.

Em termos institucionais, a Ordem dos Arquitectos (OA) não procura colmatar algum défice de formação, eventualmente com as ARS?

A AO, que eu saiba, não desenvolve especialidades especificas e, nomeadamente a de arquitetura hospitalar. Procura ser uma corporação como outra qualquer e exercer o seu poder e influência de acordo com o número de membros que tem. Se os sócios pagarem as quotas tanto melhor. Colégios de Especialidade desconheço que tenha, ao contrário do que acontece na Ordem dos Engenheiros. Não vejo a OA muito preocupada na pós-formação escolar em termos de especialização em determinadas áreas.

O Estado despojou-se de um corpo técnico que tinha inicialmente na DGCH e depois na DGIES e nas Direções Regionais, que servia de interlocutor, servia para informar e para fazer projetos, mas depois, à medida que foi reduzindo os seus efetivos, servia pelo menos para emitir pareceres para o Estado sobre o que fazer, estabelecer preços para o projeto e servir de interlocutor com os gabinetes. Qual a sua opinião sobre este processo?

As pessoas a certa altura vão envelhecendo e depois reformam-se. À medida que os detentores do conhecimento se vão embora, e como o Estado limitou as entradas para os seus quadros, cada vez tem menos gente a entrar, e quem entrou já não teve quem ensinasse. De um momento para o outro o Estado ficou sem quadros. Extinguiu organismos, e em alguns casos substituiu os existentes por outros, sem vantagens visíveis. O Estado não fez o planeamento atempado da substituição para continuar com pessoas, com sabedoria.

Ilídio Pelicano ingressou na Escola Superior de Belas Artes, tendo-se formado no ano letivo de 1971/72. Trabalhou na Hidrotécnica Portuguesa e na Câmara Municipal de Lisboa. Em 1979, fundou a ARIPA – Ilídio Pelicano, Arquitectos, Lda. O gabinete iniciou a sua atividade com projetos de pequena e média dimensão, tendo-se especializado, em meados dos anos 80, na área da Saúde.

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