A metrologia na manutenção hospitalar

Considerando o papel fundamental da Metrologia na garantia da Qualidade dos serviços de saúde, pretende-se, com este artigo, apresentar a experiência acumulada no Serviço de Instalações e Equipamentos do Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN), no que concerne às metodologias implementadas para garantir a rastreabilidade metrológica dos instrumentos e sistemas de medição. Neste processo, enfatiza-se a relevância da revisão efetuada aos procedimentos de manutenção e a respetiva aplicabilidade no contexto metrológico, tendo em vista a otimização dos recursos disponíveis.

A importância da metrologia na saúde

Tendo em consideração a crescente preocupação em assegurar o máximo rigor nas medições, o Serviço de Instalações e Equipamentos do Centro Hospitalar Lisboa Norte tem conduzido um conjunto de atividades no sentido de promover a implementação de novos paradigmas na manutenção de equipamentos médicos.

Na conceção deste caminho, a necessidade de demonstrar boas práticas de manutenção e de ensaios/ calibrações nos processos de auditoria constituiu uma fonte de motivação adicional. Acresce o desafio imposto pela gestão da informação dos dados que, pela sua dimensão, deve ser estar armazenada em suporte eletrónico, em substituição da informação em suporte de papel.

Tendo em vista a melhoria contínua da Qualidade dos serviços prestados, e face ao constante crescimento do número de equipamentos em processo de ensaio, decidiu-se rever os procedimentos de manutenção, eliminando duplicação de procedimentos entre a manutenção tradicional e os ensaios realizados. Importa, contudo, salientar que a necessidade de controlar custos, numa prestativa da sua redução, constitui um desafio que merece ser enfatizado no presente trabalho.

Neste contexto, enumera-se um conjunto de parâmetros correntemente sujeitos a medição e utilizados em equipamentos de monitorização, de suporte de vida ou de apoio ao diagnóstico, designadamente: temperatura corporal, frequência cardíaca e respiratória, fluxo inspiratório, pressão nas vias aéreas, massa corporal, pressão sanguínea sistólica e diastólica, com medição invasiva e não invasiva, fluxo sanguíneo, PH, saturação de oxigénio no sangue, caudais de medicamentos e potenciais elétricos, entre outros.

Estes parâmetros, eventualmente não exaustivos, devem ser corretamente medidos sob risco de poder influenciar a decisão clínica.

Analisando alguns dos exemplos referidos anteriormente, apraz gizar as seguintes considerações:

  • A temperatura corporal, medida em grau Celsius (°C) com um termómetro timpânico, poderá estar sujeita a erros que podem influenciar o diagnóstico. De facto, temperaturas elevadas geram degradação das proteínas, e do valor da temperatura medida depende a agressividade da medicação.
  • A pressão sanguínea sistólica, diastólica e média, medida em mmHg com um monitor NIBP (Non Invasive Blood Pressure), ao apresentar um erro de medição por excesso, e em situação crítica, pode gerar uma decisão clínica errada. De facto, a pressão média é a pressão de perfusão a que os tecidos são irrigados e tem de ser superior a 65 mmHg. Uma indicação de medição errada poderá conduzir à não tomada da decisão adequada.
  • Os potenciais elétricos à superfície do corpo gerados pela atividade elétrica do coração são medidos em amplitude, na unidade mV, e o tempo de duração da onda, medido na unidade segundo, com um eletrocardiógrafo. A materialização desta medição é obtida através do eletrocardiograma, que representa no seu traçado a atividade elétrica do coração. A onda P corresponde à despolarização auricular e o intervalo PR deve apresentar 0,12 segundos. O complexo QRS corresponde à despolarização ventricular e deve medir 1 mV e a onda T corresponde à repolarização ventricular.

Se o intervalo PR for medido com um valor superior, significa que existe um bloqueio de primeiro grau. Se o complexo QRS apresentar valor superior a 1mV, significa que existe hipertrofia ventricular. Neste contexto, facilmente é percetível que uma correta medição do potencial elétrico e do tempo é fundamental para assegurar um erro mínimo de medição, e consequentemente, uma adequada decisão clínica.

  • A energia elétrica aplicada a um doente que apresenta um quadro de fibrilhação auricular ou ventricular, medida em Joule, utilizando um equipamento designado por desfibrilhador, deve estar em conformidade com a arritmia que o doente apresenta. No caso da fibrilhação ventricular, arritmia grave, aplica-se energia no valor de 300/350 Joules e no caso de fibrilhação auricular aplicam-se apenas 50/80 Joules. A energia elétrica debitada deve corresponder ao valor que o operador do equipamento decidiu aplicar.
  • O caudal utilizado na infusão de fármacos, medido em mL/hora, com utilização de bombas e seringas perfusoras, exige rigor na sua medição, cuja exatidão é diretamente proporcional à concentração do fármaco e respetivo potencial farmacológico.

Dos exemplos apresentados podemos concluir que a medição de parâmetros fisiológicos monitorizados, ou simplesmente medidos, tem de ser metrologicamente adequada ao processo de decisão clínica. Também no caso dos tratamentos, quando realizados em função do valor de grandezas físicas, o princípio atrás enunciado deverá ser aplicado de forma rigorosa. Desta forma, existe um maior grau de confiança na indicação da medição e uma garantia da adequabilidade do tratamento clínico.

Considerando, também, que a complexidade da atividade clínica cresce com as tecnologias envolvidas, de forma diretamente proporcional ao risco clínico, a crescente preocupação com a influência das medições no processo de decisão clínica constitui um fator comum de constante acompanhamento pelos profissionais que trabalham diretamente com os equipamentos e sistemas de medição.

Uma perspetiva de desenvolvimento da metrologia na saúde

A validação e a manutenção de todos os equipamentos críticos suscetíveis de ter um impacto direto ou indireto sobre a qualidade e a segurança dos serviços de saúde deverão ser realizadas com uma periodicidade definida e, consequentemente, registadas e documentadas.

Neste contexto, a atividade metrológica na saúde tem necessariamente de se integrar na gestão do ciclo de vida dos equipamentos e contribuir para o cumprimento dos seguintes objetivos:

  • Fiabilidade elevada;
  • Disponibilidade operacional adequada ao processo clínico em que se inserem e
  • Contribuição para o controlo de custos.

Tendo por objetivo a redução e eliminação de falhas, a manutenção traduz-se em todas as atividades preventivas ou corretivas, necessárias para o correto funcionamento dos equipamentos e de todos os seus acessórios. Assim, compete à Manutenção reduzir a probabilidade de falha, as consequências dos modos de falha nas funções requeridas ao equipamento, as causas da falha, a forma de as evitar ou, sendo impossível, de reduzir/eliminar as suas consequências. É, também uma atribuição da Manutenção a constante procura de metodologias que satisfaçam as condições acima referidas, tendo em vista o menor custo do respetivo ciclo de vida do equipamento.

De acordo com a função do equipamento, o modelo tradicional de manutenção baseia-se na aplicação de manutenção preventiva e de manutenção corretiva, nuns casos tendo em conta a severidade do risco que lhe está associado e a fiabilidade exigida, e noutros a disponibilidade operacional tendo em vista as responsabilidades clínicas assumidas.

A manutenção preventiva pode assumir o formato de condicionada ou de sistemática. Assume-se a manutenção preventiva condicionada quando a mesma for executada em função do estado real do equipamento e dos seus componentes com desgaste, a partir da monitorização de parâmetros físicos, como por exemplo a pressão diferencial, no caso de filtros. O conceito de manutenção preventiva sistemática é aplicado quando existe uma função do tempo de funcionamento, medido por contador horário, ou simplesmente em função dos dias de calendário.

Em ambas as situações, são aplicadas as especificações e recomendações dadas pelos fabricantes.

Importa salientar que a manutenção preventiva exige planeamento, planos de manutenção, e exige a elaboração de planos de trabalho definindo as tarefas a executar, nomeadamente os aspetos a inspecionar, os componentes a substituir e o ensaio do equipamento. Nesta fase de intervenção é de extrema relevância a sensibilização para a importância da rastreabilidade metrológica das medições após as respetivas intervenções de manutenção, sendo que estas operações não substituem os ensaios metrológicos realizados em conformidade com as boas práticas aplicáveis.

Paralelamente ao desenvolvimento da atividade de manutenção, na década de 1990 ocorreu nos serviços de saúde um processo de qualificação visando a sua acreditação com base em modelos onde a metrologia é um pilar da qualidade, pois garante a obtenção de resultados fiáveis nos equipamentos de monitorização e medição.

Independentemente da boa prática dos operadores de manutenção (correntemente fabricantes ou representes das marcas dos equipamentos), encontrámo-nos perante o facto de, simultaneamente com a manutenção, ser necessário contratar serviços prestadores de calibrações e ensaios, de forma a avaliarem o desempenho metrológico dos equipamentos após a sua reparação. Acontece que os operadores de manutenção não se encontram acreditados pelo Sistema Português de Qualidade, pelo que a avaliação da conformidade dos equipamentos através de ensaio e calibração tem um valor limitado para as auditorias de acreditação de serviços clínicos. Também se reconhece que a certificação por parte de Entidade independente da Manutenção é uma garantia adicional da qualidade.

Fica, assim, clarificado que as avaliações de conformidade metrológica dos equipamentos de uso clínico com funções de monitorização e medição de parâmetros fisiológicos e de grandezas físicas em equipamentos de apoio devem ser efetuadas por entidades acreditadas. Em Portugal, o Instituto Português de Acreditação (IPAC) é a entidade nacional com competência para o efeito. 

Uma abordagem transversal às necessidades de manutenção do universo do equipamento hospitalar permite recomendar o seguinte agrupamento:

  1. Equipamento com componentes sujeitos a desgaste (em consequência do seu normal funcionamento) e com substituição de acordo com o modelo de manutenção adotado. A título de exemplo referem-se os ventiladores de cuidados intensivos, o equipamento de anestesia, equipamento de esterilização, mesas operatórias, etc...
  2. Equipamento sem componentes sujeitos a desgaste, sem substituições periódicas e com reduzida probabilidade de avaria, designadamente:
  • Os monitores de sinais vitais e monitores de pressão não invasiva, equipamentos compactos com desgaste ou avaria em componentes externos, tais como braçadeiras, cabos de ECG e sensores de SpO2;
  • Os desfibrilhadores, equipamentos igualmente compactos com eventual probabilidade de avaria nas pás e na bateria;
  • Instrumentos de pesagem: humana, de objetos, de fármacos, sistemas de pesagem acoplados a cadeiras e camas, em todas as gamas de medição e classe de exatidão aplicáveis;
  • Dispositivos termorregulados (banhos maria), igualmente sem componentes de desgaste mas apenas de aquecimento, com necessidade de garantia do controlo da temperatura;
  • Frigoríficos/estufas para os quais a substituição de componentes não está recomendada mas sim monitorização da homogeneização da temperatura no seu interior.

Face a todo o exposto para os equipamentos caracterizados acima, adotar um modelo de manutenção que tenha em consideração a rastreabilidade metrológica dos instrumentos e sistemas de medição permite garantir a execução das tarefas planeadas no modelo tradicional de manutenção, com as seguintes vantagens:

  • Os equipamentos são ensaiados e calibrados por entidades cuja competência se encontra devidamente comprovada, ou seja, a rastreabilidade metrológica das medições é devidamente assegurada;
  • Os certificados de calibração emitidos são reconhecidos por entidade externa;
  • São satisfeitas as exigências das auditorias da qualidade no âmbito da acreditação de serviços;
  • Minimiza-se o risco clínico;
  • Reduzem-se custos, já que são eliminados os custos da manutenção preventiva.

A manutenção corretiva mantém-se, pois sempre que o ensaio e a calibração detetam uma avaria o equipamento é remetido para o prestador de serviços de manutenção.

O que consta do plano de trabalho de cada ensaio e calibração de equipamento?

O ensaio e a calibração de cada equipamento são efetuados em função das grandezas medidas inerentes à atividade clínica onde o equipamento é utilizado. Os critérios de aceitação e os pontos de calibração, ou se encontram definidos em documentos de referência ou são definidos pelos utilizadores.

Na aquisição deste tipo de serviços, para além das operações metrológicas de calibração, deve ser exigida a inspeção visual tão pormenorizada quanto possível, e todos os ensaios de segurança elétrica aplicáveis a cada caso. Em conformidade com as normas Europeias, os relatórios de ensaio devem apresentar de uma forma clara e inequívoca o resultado dessa análise qualitativa. As tabelas 1 e 2 apresentam um exemplo de aplicação.

Tabela 1 - Segurança elétrica EN 62353:2008

Resistência de isolamento Entre o condutor de terra e quaisquer partes condutoras do invólucro do equipamento
Corresntes de fuga do chassis Entre partes ativas e chassis com terra ligada e com terra aberta
Correntes de fuga de partes aplicadas ao doente Entre as partes aplicadas através do doente para a terra, em funcionamento normal ou apenas com tensão aplicada

Tabela 2 - Inspeção visual

Visibilidade de simbolos e marcas de segurança elétrica Referentes à classificação do sistema de proteção e ao nível de isolamento elétrico
Integridade do chassis Quanto a deformações físicas
Integridade do painel de comando Quanto a deformações e funcionalidade dos comandos
Integridade do visor Quanto ao estado físico e qualidade da imagem
Estado dos acessórios Continuidade e isolamento de cabos de ligação de sensores, eletrodos, braçadeiras, etc., e estado dos pinos de ligação
Alimentação elétrica Continuidade e isolamento do cabo e estado das fichas.

Acesso à informação

Sendo necessária a realização de ensaios e calibrações de equipamentos, é indispensável demonstrar a sua realização, bem como de toda a atividade de manutenção realizada no equipamento constante do processo de acreditação de cada serviço. Para o efeito, e no caso do CHLN, existe o sistema de gestão da manutenção IBM Tivoli MAXIMO Entreprise Asset Management, Versão 7.5, do qual consta o histórico de todos os ativos do CHLN. Importa referir, porque é prática em alguns hospitais, que o volume e dimensão da informação inviabilizam a utilização do suporte de papel. De acordo com as práticas implementadas no CHLN, os requisitos desta aplicação informática para resposta às auditorias são:

  • Elaboração de lista de equipamento por processo de certificação;
  • Atribuição de acesso a cada processo de acreditação para visualização do histórico dos ativos da respetiva lista de equipamento;
  • Registo em tempo útil das auditorias de todas as atividades de manutenção, bem como dos ensaios e calibrações efetuadas.

Conclusão

A integração de boas práticas metrológicas nas atividades de manutenção e de monitorização gera vantagens a vários níveis, sendo a fiabilidade dos equipamentos e os custos da manutenção, os principais aspetos a salientar.

Conclui-se também que as práticas adotadas, comparativamente aos modelos tradicionais, permitiram avaliar e compreender a importância do erro da medição e interpretá-lo, em algumas situações, como falha detetada, passível de resolução, e sem implicação nos custos do serviço.

A terminar, salienta-se que a participação de quadros técnicos do SIE do CHLN no Grupo de Trabalho para a Metrologia na Saúde (GT/MS), da Comissão Setorial para a Saúde do Instituto Português da Qualidade, foi relevante para a atividade desenvolvida no hospital.

Assim, face à importância do tema e respetivo impacto na segurança do doente e na qualidade de vida do cidadão, encoraja-se a respetiva reflexão e consequente prática de ações pró-ativas que possam contribuir para a melhoria dos serviços e cuidados de saúde prestados à sociedade.

Artigo em co-autoria com Maria do Céu Ferreira.

Referências Bibliográficas

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João Jorge Durão Carvalho

Membro do Conselho de Redação da TecnoHospital / ex-Diretor do SIE do CHLN

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